COTIDIANO
Falou e disse: A precisão dos clichês
Publicado em 02/02/2015 às 14:56
O professor Chico Viana associa a variedade de temas própria da crônica com reflexões e comentários sobre a língua portuguesa. Contato com a coluna:�[email protected]
Os manuais de redação dizem que escrever bem é evitar lugares-comuns. Nada compromete mais o estilo do que o uso de expressões batidas, do feijão com arroz linguístico, que nada acrescenta à expressão. Mas não é fácil fugir ao clichê (acabei de usar um no período anterior: “feijão com arroz”).
Por que é tão difícil escapar dessas fórmulas? Em parte, porque a língua tem um estoque limitado de imagens; não se pode a todo momento criar uma metáfora e, menos ainda, fazê-la atraente ao leitor. O público às vezes leva tempo para se afeiçoar tanto à semântica quanto à sonoridade de uma imagem nova.
Nelson Rodrigues dizia que seu maior achado era a repetição. Fiel a isso, recheava seus textos com expressões que os leitores já sabiam de cor. Tanto nas crônicas quanto nos romances, deparamo-nos a todo momento com referências à “ricaça das narinas de cadáver”, ao “Narciso às avessas, que cospe na própria imagem”, ao “sol de rachar catedrais”. São imagens criadas pelo próprio Nelson, é certo, mas que perderam a novidade de tanto ser repetidas.
Nem por isto a sua prosa é menos sedutora. Pelo contrário, lemos o autor de “Vestido de noiva” com um prazer oposto ao que nos propicia, por exemplo, um Guimarães Rosa. Lemos para nos deparar com o mesmo, o conhecido, o quase-igual. Para gozar daquele “prazer de reencontro” de que nos fala Freud.
Uma boa explicação para o sucesso dos clichês encontro na página 199 de “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini. Vale a pena transcrever a passagem:
“Um professor de redação que tive na San Jose State sempre dizia, referindo-se aos clichês: ‘Tratem de evitá-lo como se evita uma praga.’ E ria da própria piada. A turma toda ria junto com ele, mas sempre achei que aquilo era uma tremenda injustiça. Porque, muitas vezes, eles são de uma precisão impressionante. O problema é que a adequação das expressões-clichês é ofuscada pela natureza da expressão enquanto clichê.”
Não deixa de ser irônico: ao orientar os alunos a rejeitar os clichês, o professor não escapa de produzir um deles (“como se evita uma praga”). Isso mostra que o clichê parece mesmo inevitável; funciona porque é preciso, exato. A precisão faz com que muitas vezes o escolhamos a despeito da sua natureza de lugar-comum. Servimo-nos dele não por preguiça mental, ou carência vocabular, mas por em dado momento não nos ocorrer nada mais expressivo.
DE OLHO NO VESTIBULAR
“Para quem torce não importa apenas competir, e são nessas horas que tanto se critica o individualismo.” (Redação de aluno)
Nessa passagem ocorre a flexão indevida do verbo “ser”, que faz parte da expressão de reforço “é que”. Um exemplo conhecido do uso dessa expressão está na frase “Nós é que somos brasileiros”.
O erro tende a ocorrer quando o “é” e o “que” vêm separados, como na frase do aluno, e se perde a noção do conjunto. É mais difícil se enganar quando os componentes vêm juntos: “...nessas horas é que tanto se critica o individualismo”.
Eis a frase corrigida: “Para quem torce não importa apenas competir; é nessas horas que tanto se critica o individualismo.”
TIRE SUA DÚVIDA
E-mail de Émerson F.: “Professor, o correto é ‘estabelecido na rua’ ou ‘estabelecido à rua’? Obrigado.”
Caro Émerson, ensina Celso Cunha em sua Gramática da Língua Portuguesa: quando indicam situação no espaço, as preposições “a” e “em” significam, respectivamente, “equivalência, concomitância”; e “posição no interior de”, “dentro dos limites de”, “em contato com”, “em cima de”.
Entre os exemplos que ele apresenta, destaco: “Esses ficarão à direita da Mão” (J. de Lima) e “No fundo da cozinha, as netas de antigas escravas rezavam pela glória do menino de Sinhá” (A. M. Machado).
Como se faz referência à localização de um estabelecimento “nos limites” de determinada rua, a construção correta é a primeira: “estabelecido na rua”.
Lembro que “estabelecido a” constitui um galicismo, ou seja, uma construção importada do francês e, como tal, condenada por alguns gramáticos. Napoleão Mendes de Almeida considera ainda galicismos expressões como “Está a meu gosto” (em vez de “Está conforme meu gosto”), “Nada tenho a fazer” (em vez de “Nada tenho de fazer”) etc.
PALAVREANDO
Se um idiota não se acha um gênio, ele não é um perfeito idiota.
****
As máquinas poderão um dia vencer o homem, mas serão incapazes de comemorar.
****
Hoje as pessoas preferem segurança a justiça social. Fazem mais questão da ronda do que da renda.
A precisão dos clichês
Os manuais de redação dizem que escrever bem é evitar lugares-comuns. Nada compromete mais o estilo do que o uso de expressões batidas, do feijão com arroz linguístico, que nada acrescenta à expressão. Mas não é fácil fugir ao clichê (acabei de usar um no período anterior: “feijão com arroz”).
Por que é tão difícil escapar dessas fórmulas? Em parte, porque a língua tem um estoque limitado de imagens; não se pode a todo momento criar uma metáfora e, menos ainda, fazê-la atraente ao leitor. O público às vezes leva tempo para se afeiçoar tanto à semântica quanto à sonoridade de uma imagem nova.
Nelson Rodrigues dizia que seu maior achado era a repetição. Fiel a isso, recheava seus textos com expressões que os leitores já sabiam de cor. Tanto nas crônicas quanto nos romances, deparamo-nos a todo momento com referências à “ricaça das narinas de cadáver”, ao “Narciso às avessas, que cospe na própria imagem”, ao “sol de rachar catedrais”. São imagens criadas pelo próprio Nelson, é certo, mas que perderam a novidade de tanto ser repetidas.
Nem por isto a sua prosa é menos sedutora. Pelo contrário, lemos o autor de “Vestido de noiva” com um prazer oposto ao que nos propicia, por exemplo, um Guimarães Rosa. Lemos para nos deparar com o mesmo, o conhecido, o quase-igual. Para gozar daquele “prazer de reencontro” de que nos fala Freud.
Uma boa explicação para o sucesso dos clichês encontro na página 199 de “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini. Vale a pena transcrever a passagem:
“Um professor de redação que tive na San Jose State sempre dizia, referindo-se aos clichês: ‘Tratem de evitá-lo como se evita uma praga.’ E ria da própria piada. A turma toda ria junto com ele, mas sempre achei que aquilo era uma tremenda injustiça. Porque, muitas vezes, eles são de uma precisão impressionante. O problema é que a adequação das expressões-clichês é ofuscada pela natureza da expressão enquanto clichê.”
Não deixa de ser irônico: ao orientar os alunos a rejeitar os clichês, o professor não escapa de produzir um deles (“como se evita uma praga”). Isso mostra que o clichê parece mesmo inevitável; funciona porque é preciso, exato. A precisão faz com que muitas vezes o escolhamos a despeito da sua natureza de lugar-comum. Servimo-nos dele não por preguiça mental, ou carência vocabular, mas por em dado momento não nos ocorrer nada mais expressivo.
DE OLHO NO VESTIBULAR
“Para quem torce não importa apenas competir, e são nessas horas que tanto se critica o individualismo.” (Redação de aluno)
Nessa passagem ocorre a flexão indevida do verbo “ser”, que faz parte da expressão de reforço “é que”. Um exemplo conhecido do uso dessa expressão está na frase “Nós é que somos brasileiros”.
O erro tende a ocorrer quando o “é” e o “que” vêm separados, como na frase do aluno, e se perde a noção do conjunto. É mais difícil se enganar quando os componentes vêm juntos: “...nessas horas é que tanto se critica o individualismo”.
Eis a frase corrigida: “Para quem torce não importa apenas competir; é nessas horas que tanto se critica o individualismo.”
TIRE SUA DÚVIDA
E-mail de Émerson F.: “Professor, o correto é ‘estabelecido na rua’ ou ‘estabelecido à rua’? Obrigado.”
Caro Émerson, ensina Celso Cunha em sua Gramática da Língua Portuguesa: quando indicam situação no espaço, as preposições “a” e “em” significam, respectivamente, “equivalência, concomitância”; e “posição no interior de”, “dentro dos limites de”, “em contato com”, “em cima de”.
Entre os exemplos que ele apresenta, destaco: “Esses ficarão à direita da Mão” (J. de Lima) e “No fundo da cozinha, as netas de antigas escravas rezavam pela glória do menino de Sinhá” (A. M. Machado).
Como se faz referência à localização de um estabelecimento “nos limites” de determinada rua, a construção correta é a primeira: “estabelecido na rua”.
Lembro que “estabelecido a” constitui um galicismo, ou seja, uma construção importada do francês e, como tal, condenada por alguns gramáticos. Napoleão Mendes de Almeida considera ainda galicismos expressões como “Está a meu gosto” (em vez de “Está conforme meu gosto”), “Nada tenho a fazer” (em vez de “Nada tenho de fazer”) etc.
PALAVREANDO
Se um idiota não se acha um gênio, ele não é um perfeito idiota.
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As máquinas poderão um dia vencer o homem, mas serão incapazes de comemorar.
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Hoje as pessoas preferem segurança a justiça social. Fazem mais questão da ronda do que da renda.
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