Os entregadores de aplicativo têm protagonizado protestos e mobilizações, conhecidos como ‘o breque dos apps’, no Brasil e em todos os países da América Latina. Em João Pessoa, a mobilização se intensificou quando o motoboy Kelton Moraes foi vítima de um atropelamento, por um motorista que dirigia muito acima do limite de velocidade, na noite do dia 11 de setembro deste ano. Por causa disso, os protestos deram sequência à motociatas cobrando justiça por Kelton. Dentro dessa categoria insurgente, existe um grupo ainda mais vulnerável, embora pouco visível. Assédio, baixa remuneração e saúde em risco: essa é a rotina de dezenas de mulheres que trabalham realizando entregas em João Pessoa.
“Nós mulheres sempre somos a expectativa do erro, principalmente em algo relacionado ao trânsito. Esperam que sejamos menos capazes”, diz Aline Gomes, de 27 anos, entregadora de cooperativa desde abril de 2020. Para Aline, é comum sentir os olhares e o julgamento implícito enquanto faz as entregas. Além disso, escuta diariamente que ela é “desenrolada para uma mulher” e que “ até anda bem de moto”.
Já Bianca Alessandra, de 21 anos, que está na profissão há quase quatro anos, chegou a trabalhar em uma cooperativa em que ela era a única mulher da equipe: “fui escalada para trabalhar em um estabelecimento, nesse dia o gerente pediu ao dono da cooperativa que não me colocasse porque eu era mulher e também pela minha cor, então fui vítima de machismo e racismo ao mesmo tempo”. Bianca conta que já demonstrou interesse em uma vaga para entregadores, e teve como resposta que era “apenas para homens”. Ela tem participado dos últimos protestos, “a gente tá na luta porque no mundo que a gente vive, o dinheiro vale uma vida. Dizem que tem muito motoboy no mundo, mas é claro, por causa do desemprego e falta de oportunidades, as pessoas que precisam vão pra rua arriscar a vida fazendo entrega”.
Leticia Dumont trabalha com entregas há um ano, mas precisou parar por um período, pois estava sem seu principal instrumento de trabalho, a motocicleta. Recentemente ela alugou uma moto e voltou ao trabalho. Para se manter trabalhando, Leticia subtrai do seu salário, que já é baixo, o valor da mensalidade da moto. “No fim, saímos no prejuízo de todas as formas possíveis. Muitos entregadores não conseguem ter uma moto regular ou sequer habilitação. É a realidade, mas a fome não pede documento.”
Muito trabalho, baixa remuneração: “literalmente estou pagando para trabalhar”
Elas contam que alguns estabelecimentos para os quais trabalham em João Pessoa oferecem como pagamento uma taxa de R$3,00: “Como pode? Se não paga nem 1 litro de gasolina? O que dirá remédio, caso aconteça algum acidente no meio do caminho. Qual medicamento custa R$3,00?”, diz Letícia. Ela paga um valor semanal pela moto que utiliza no trabalho: “são R$260,00; se eu receber R$300,00 numa semana fraca, eu não fico com nada além da gasolina para trabalhar durante a semana. O máximo que chego a tirar é R$380,00. Literalmente tô pagando pra trabalhar”.
Restaurantes a que elas prestam serviço tiveram reajustes de preços durante a pandemia. No início, baixaram o valor da taxa. “Passamos mais de um ano com a taxa menor do que antes da pandemia, em contrapartida tivemos diversos aumentos na gasolina e várias outras coisas, como comida, energia, gás, algumas peças de manutenção da moto são o dobro do valor”, diz Aline.
Como não temos um sindicato, que de fato crie alguma regulamentação mínima de taxa, ficamos à mercê da competição desenfreada de quem oferece o serviço mais barato, independente de qual serão os ganhos dos motoboys”
Seguro desemprego: “em um segundo nossa vida não vale mais nada”
Um grande problema da profissão é a falta de seguro desemprego. “Quando a gente se acidenta, por mais leve que seja o tipo de acidente, se ficamos em casa um dia, não recebemos, entendeu? Quando a gente fica doente, a gente não recebe. Isso prejudica muitos os motoboys, não tem nenhuma seguridade”, diz Aline.
Letícia conta que, durante o trabalho, corre risco o tempo todo. “Em cima de uma moto, é contar com a sorte porque um simples desvio pode ser fatal. E se algo acontecer, ninguém vai fazer nada pela gente. Vai ficar a dívida até para enterrar, em um segundo nossa vida não vale mais nada”.
Se a gente deixa de dar lucro a cooperativa, app e restaurante, em outro segundo tem outro motoboy no lugar, pois é um mercado rotativo. Em caso de uma peça da moto quebrada, ou quem sabe uma perna, o prejuízo fica apenas pra nós que trabalha todo santo dia pela esperança de chegar o fim da noite e levar uma diária pra casa”
Higiene pessoal: “eu tive vários episódios de infecção urinária”
Outro grande problema para as entregadoras é a higiene pessoal. Aline trabalha de meio dia até dez da noite. “Quando 'tô' menstruada vira uma questão porque eu tenho cólicas muito fortes, geralmente o meu fluxo é bem intenso, e aí tu imagina ficar o dia inteiro na moto, né? Subindo e descendo, é totalmente desconfortável e também pelo fato da gente não ter um banheiro confortável, para tomar um banho e essas coisas”.
Elas relatam que mesmo nesses casos, não podem faltar no emprego. “Eu não posso dizer que eu não vou hoje porque eu 'tô' menstruada, eles não vão entender, vão dizer que estou me vitimizando ou que tenho algum tipo de indisposição para trabalhar”.
O risco à saúde não está apenas na iminência dos acidentes de trânsito, Aline vive episódios de cistite frequentes: “Eu tive vários episódios de infecção urinária porque a gente não tem um banheiro acessível. Tinha um restaurante que cedia, mas depois que muitos entregadores começaram a usar, eles impediram".
Os homens sempre se viram, né? Eles fazem na rua, mas no nosso caso não dá, então acabou que eu tive episódios recorrente de infecção urinária. Uma vez tive que ficar uma semana em casa porque ficou bem sério”.
Bianka também relata que os dias do ciclo menstrual são os mais difíceis: “atrapalha demais porque você tá em cima de um moto, sem saber pra onde tá indo, só através das rotas, quando as ruas tem buracos e quebra-molas, bate e dói muito porque estamos sensíveis”.
Assédio no trânsito, dos colegas de trabalho e dos clientes: “eles chegam nos passando a mão como se fosse normal”
O assédio é uma situação cotidiana na vida das entregadoras. Uma delas contou que alguns de seus colegas de trabalho se aproximam tocando na sua coxa ou passando a mão nas suas costas, como algo normal. “Só que para mim não é normal uma pessoa tocar em você sem sua permissão, é desrespeitoso”.
Elas relatam que são importunadas durante o trabalho e também após, algumas relatam receber mensagens invasivas dos colegas nos aplicativos de mensagem. Em uma situação, uma delas chegou a sair da cooperativa onde trabalhava para se livrar da situação de assédio “Meu colega me chamava para sair, dizia que pagaria para ficar comigo, fazia promessas, então eu preferi me desligar da empresa, eu fiquei arrasada, me prejudiquei financeiramente, mas depois acabei indo para outra cooperativa de entregas”.
O assédio desmotiva porque você tem que estar todo tempo armada para se proteger de alguma gracinha ou falta de respeito, é cansativo ter que ficar o tempo todo respondendo aos caras ou explicando a eles o que é falta de respeito e como se deve falar com uma mulher, porque deveria ser o mínimo”
Com os clientes não é diferente. “Eles nos veem como objeto, como se estivéssemos ali para satisfazer eles”. Quando entregamos o pedido, alguns clientes nos perguntam “se a entregadora vem junto”. Outras situações de assédio, por porteiros dos prédios e no trânsito são comuns em seu dia a dia. “Somos desrespeitadas o tempo todo”. Em tom de desabafo, a entregadora lamenta: “sempre soube que não poderia ser simpática com eles porque eles confundem”.
Ao JORNAL DA PARAÍBA, o entregador por aplicativo Duarte Junior, liderança da organização dos motoboys, disse que nunca recebeu nenhuma denúncia ou reclamação de assédio por parte dos entregadores de aplicativo, mas que se colocou à disposição para dialogar sobre o problema.
Grupo Organizado: “estamos nos organizando, uma foi puxando a outra”
O grupo MotoGirls JP surgiu em outubro deste ano. “Estamos nos organizando, já temos nossas camisas”. Letícia foi quem tomou a iniciativa de reunir suas colegas. “Uma foi puxando a outra, mas uma boa parte delas eu parei na rua”. O objetivo do grupo é trocar informações de segurança entre elas: “conversamos sobre a rotina, os locais em que rodamos e estamos organizando uma confraternização entre nós”.
Para Bianka, que juntou-se ao grupo recentemente “quando encontramos outras mulheres entregadoras no trânsito, somos muito bem acolhidas”. Aline também está chegando agora, mas acredita que o grupo é importante por facilitar o compartilhamento de informações, fazendo-as ajudarem umas às outras.
Quando são vítimas no trânsito, elas registram e compartilham entre si. Oportunidades de emprego também é assunto entre elas, que divulgam as informações entre o grupo e alertam se vale a pena aceitar ou não algumas ofertas.
Trocamos muitas experiências. Por exemplo, tem acontecido de fazerem pedido e no fim, ser um assalto. Uma de nossas colegas teve o telefone roubado na moto. Todas essas situações a gente passa umas para as outras, além de vagas disponíveis, promoções de aplicativo etc"
As Motogirls JP estão organizando uma ação de solidariedade com vista ao Natal e fim de ano. Letícia conta que tinha essa ideia faz tempo, mas sozinha não conseguia. "Agora falei com as meninas e todo mundo concordou. Já conseguimos algumas arrecadações”. A ideia é reunir alimentos, agasalhos, roupas, brinquedos, calçados e distribuir em algumas comunidades da capital. "Queremos fazer parcerias que nos fortaleça para conseguirmos ajudar mais gente ainda”, diz Leticia. Para doações, as pessoas interessadas podem entrar em contato com o instagram @motogirlsjp.
Precarização do trabalho e violência de gênero: “ isso é invisibilizado no discurso popular e nas metas de políticas públicas”
Manuella Castelo Branco é professora de psicologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho (GPST). Para ela, a precarização, também conhecida como ‘uberização’, é um novo tipo de controle do trabalho associado a um processo de informalização, que instaura o “trabalhador sob demanda”. Conforme a pesquisadora, o trabalho de motoboys/motogirls tem se mostrado como uma ocupação tipicamente jovem, negra e periférica. Trata-se de um trabalho informal que se vê despojado de direitos, garantias e proteções associados ao trabalho e que arca com os riscos e custos de sua atividade.
Manuella argumenta que a relação dos aplicativos/cooperativas com esses trabalhadores, assim como com os consumidores, é de clientela. “Temos nessas ocupações um exemplo claro do trabalhador ‘just in time’, ou seja, aquele que está à disposição da empresa, mas que parte de sua jornada não é reconhecida como tempo de trabalho. Eles são remunerados apenas na realização da entrega, mas o tempo que ficam disponíveis não é contabilizado. Logo temos uma regulação da produtividade do trabalho através dos desafios e as bonificações, o ‘preço dinâmico’ e etc”, diz.
Sobre as mulheres que realizam esse trabalho, a pesquisadora entende que as questões de gênero e raça complexificam as relações de trabalho, aprofundadas a partir dessas opressões. Segundo ela, “a raça acho que é o que fica mais em evidência, pois são em sua maioria trabalhadores e trabalhadoras negros e negras. Contudo, a questão do gênero tende a ser invisibilizada, ou apagada mesmo. Isso é invisibilizado no discurso popular e nas metas de políticas públicas, pois trata-se de uma atividade que confronta a fragilidade imposta às mulheres”.
O que se nota é a precarização da mão de obra feminina e a sua invisibilidade sistemática, sobretudo no campo econômico e no mercado informal de trabalho, ponto que atinge diretamente o contexto das mulheres entregadoras.
Para Manuella, é inegável o esgotamento físico e mental dos trabalhadores e trabalhadoras de aplicativo, contudo, a situação se agrava no tocante às entregadoras. “É um processo estruturalmente vinculado à divisão sexual do trabalho”, afirma, “a cada nova crise do sistema capitalista, elas vão sendo direcionadas a esses postos precarizados, de baixo reconhecimento e prestígio”.
A precarização da mão de obra feminina se dá em muitos aspectos que contribuem para a sua invisibilidade e falta de prestígio social, observa Manuella, situação agravada ainda mais pelo processo de globalização e expansão dos mercados informais e uso da tecnologia. "Entender esses agravos nos convida a olhar historicamente o lugar da mulher na sociedade e como este reverbera nas relações e naturalizações, uma vez que somos formados para naturalizar esses processos", diz Manuella.
A professora discorda da ideia de que a maioria das mulheres estão independentes, melhor empregadas e ocupando espaços de poder. Para ela, o avanço das mulheres em carreiras bem sucedidas simultaneamente ao condicionamento de outras ao subemprego, contexto que se encaixa na existência das entregadoras de aplicativo, demonstra “os méritos e mazelas persistentes na emancipação feminina por meio do trabalho, significa que precisamos lutar por um feminismo que vise não somente a ascensão de algumas”.
De maneira geral, Manuella acredita que a realidade enfrentada pelas mulheres entregadoras, denuncia um contexto fortemente marcado por um processo de feminização da pobreza e crise no trabalho reprodutivo, manifestados na nova divisão internacional do trabalho e no crescimento do mercado de serviços.
Segundo Manuella Castelo Branco, embora o ingresso das mulheres nos serviços de entregas por aplicativo seja um cenário subversivo aos papéis sociais a elas impostos (lembrar da recatada e do lar), a ocupação desses espaços considerados masculinos não traz autonomia e emancipação para essas trabalhadoras.“Ele na verdade inverte a estrutura central da divisão sexual do trabalho, e perpetua e agrava a hierarquização existente”.
“Precisamos nos aproximar cada vez mais dessa realidade, escutar essas mulheres, organizá-las também como forma de fortalecimento desse coletivo na luta por condições dignas de trabalho e de vida”, finaliza.
Dados
Segundo o Instituto Locomotiva, o Brasil tem hoje aproximadamente 20% de sua população adulta – o equivalente a 32,4 milhões de pessoas – que utilizam algum tipo de app para trabalhar. Em fevereiro do ano passado – ou seja, antes do início da pandemia de Covid-19 -, essa fatia era menor, de 13%. O levantamento não inclui os entregadores por cooperativas e não há recorte de gênero para entendermos qual a parcela feminina neste cálculo.
Não há número oficial do total de mulheres entregadoras no Brasil, mas um levantamento digital feito pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) mostra que 94,6% da categoria é formada por homens. Portanto, as mulheres têm enfrentado desafios próprios, em uma categoria em que ainda são minoria e os debates da questão ainda estão centrados no masculino.