O silêncio, embora substantivo masculino, sempre foi empurrado à mulher com urgência e caráter único. Inegável e insubstituível em relação a gênero. Cale e consinta, isso é o que as disseram e ainda as dizem. O chão histórico é repleto de manchas de sangue das diversas mulheres que não silenciaram e foram espelho para gritos que resultariam em lutas. Dores e lágrimas das que não conseguiram sequer ver o resultado dos seus esforços.
Ser mulher carrega, muitas vezes, significados doloridos demais para serem festejados, marcas permanentes que, por vezes, ficam na pele daquelas que o machismo fez questão de registrar com pancadas ininterruptas. Os gritos ecoam pelas ruas, ninguém ouve. O silencio, antes feminino, torna-se generalizado. "Em briga de marido e mulher não se mete a colher", eles disseram. E com pretexto de respeito à vida alheia privada, muitas vidas femininas se vão, estupidamente invisíveis.
A velhice, por muitos considerada a idade ideal, chega para a maioria, levando em conta a expectativa de vida no Brasil. Para as mulheres ela parece vir mais pesada. Os fardos podem ser vários, mas muitas revestem a solidão, tão temida pela sociedade, de solitude. Ressignificam o silêncio, fazem dele paz e morada do que uns veem como últimos dias, mas elas os chamam de liberdade.
Marcas da opressão: Vencendo o medo
Os sinais da vaidade chamam atenção. A vestimenta colorida, o batom vermelho e os acessórios da moda remontam ao estado de espírito de alguém que vê a vida com felicidade e entusiasmo. Dona Nete é uma das que ressignificou o silêncio e o transformou em liberdade, essa que para ela veio diretamente da independência. Nete é apelido, o nome precisa ser guardado por um sigilo que ela julga necessário. Mulher negra, abriga seus 66 anos de luta e resistência numa pequena casa própria, conquistada, exclusivamente, por seu trabalho suado no Bairro Popular, em Santa Rita, na Paraíba. Todos os dias acorda às 5h da manhã para brincar de viver. Brincar, verbo de ação que carrega a leveza com que ela vive nos dias de hoje, leveza essa que era nenhuma nos tempos passados quando ser mulher ainda lhe significava dor e sofrimento, para não dizer prisão.
Quando jovem foi empurrada ao matrimônio, aos 20. Diziam-na que mulher para ser mulher precisava casar e ter família, e em busca de uma liberdade que hoje entende por outros olhos, Nete lançou-se ao casamento com um homem que sequer amava. Nos dias de dor, aprisionada a uma relação onde a objetificação era tanta que transbordava a violência emocional e tornara-se física, ela recordava de sua mãe. Mãe que ao mencionar os olhos enchem de lágrimas, águas de amor, saudade e arrependimento. Quisera Nete ter sido melhor filha, mas o cotidiano não a permitiu. Irônico é saber que sua mãe viveu a mesma dependência diante do marido, irônico e doloroso.
As marcas do passado ultrapassam o relacionamento abusivo e desaguam na crueldade social chamada racismo. A melanina acentuada trouxe a Dona Nete dias tristes, onde sua autoestima era abalada devido a rejeição do próprio marido, homem branco, a sua aparência. Olhares perversos limitaram os espaços que ela deveria frequentar, e de tantos limites acabou sobrando apenas as quatro paredes de casa.
Paredes que abrigaram seus três filhos, criados em meio ao caos de uma família tradicional aos olhos de fora. Ainda sobre os frutos, ela lamenta ao dizer que os dois filhos homens reproduzem hoje o machismo demasiadamente visto quando crianças, e reitera o quanto o desamor pode deixar feridas profundas e atemporais. Traços negros que antes eram alvo de recharçamento, hoje lhe são motivo de orgulho. O nariz que tanto criticaram permite a Dona Nete uma respiração tranquila em meio a uma vida de resgate da autoestima.
Após 39 anos de casamento a liberdade chegou para ela. A senhora, que dedica parte de sua superação a um grupo de mútua ajuda que integra, estampa um sorriso de quem, como a própria diz, se sente com apenas 26 anos de idade. As vozes que a chamavam de burra pela baixa escolaridade se calaram. Hoje usa sua habilidade de leitura para enriquecer a alma com a literatura do grupo. A feminilidade que exerce vem da força diante dos impasses, o divórcio foi sua alforria e grito de bravura. Jamais se submeteria novamente, jamais voltaria a achar que enquanto mulher necessitava de um homem para a subsistência. As amarras foram desfeitas, o passado deixado na memória e sua fé abriu alas para os sonhos que ainda realizaria.
O direito de ir e vir, negado por anos, hoje lhe acalanta e permite o sorriso de quem depende só de si. A paraibana é firme ao relatar o quanto a independência financeira é importante para as mulheres numa sociedade que faz questão de subjugá-las. Seu trabalho é movimento, nunca estática, o vai e vem cotidiano é outra conquista que denota a liberdade dos seus dias. Como sacoleira, sobe e desce as ruas de sua cidade, distribuindo o que traz consigo. E no fim, deixa bem mais que mercadorias, os sorrisos e palavras gentis são marcas registradas da senhora que já viu de perto os tormentos humanos, mas decidiu seguir em frente.
Seus dias passam longe de penumbras relativas a solidão, sua nova casa abriga cinco cãezinhos que trazem além da companhia, o gosto por dedicar tempo aos outros, como julga tão importante. Latidos, barulhos da televisão e, como boa nordestina, o forró como trilha sonora do pouco tempo que passa em casa. É dona da rua, gasta seu tempo não só com trabalho, que iniciou aos 8 anos de idade, mas também contemplando as belezas que não a permitiram quando jovem. Momentos de lazer trazem bons ventos praianos, exercícios na praça, danças despretensiosas e brincadeiras com algum dos 8 netos e 4 bisnetos que tem. Os frutos ainda não estão todos maduros, e é notório sua esperança em deixar um legado positivo para essa linhagem oriunda do ventre resistente aos pesares.
Para as mulheres o medo é uma muralha que parece instransponível, todos os dedos apontados, caminhos impostos e vidas pré-determinadas por vozes externas e autoritárias.
Dona Nete fora por anos refém desse medo, que a paralisou e submeteu a viver uma vida repleta de dores e humilhações incabíveis nessas linhas, que agora contam uma história de coragem. “Naquele tempo só homem pedia separação, se a mulher pedisse era acusada de adúltera”.
O pensar dos outros a castigou e prendeu por anos na infelicidade. Com firmeza, ela afirma que tem consciência de que a violência que sofreu por parte do seu ex-marido tinha sua posição de mulher como justificativa, notava que ele a considerava frágil e dependente, e por isso a machucava, achando que ela estaria sempre ali, mas ela se foi. O adeus revestido de esperança de uma nova vida a trouxe a infância que não tivera, os sonhos que conquistou sozinha e a certeza de que era uma pessoa renovada, e ninguém a tiraria isso.
Hoje, Nete vocifera aos quatro ventos que ser mulher é sinônimo de liberdade, e assim enxerga seu exercício da feminilidade após os 60. O olhar sereno por priorizar a paz de espírito e os cuidados emocionais. Transmite com a doçura da voz uma autoconfiança que vem diretamente do autocuidado, esse perceptível aos olhares dos jovens inexperientes que a cercam.
Autocuidado que veio com o tempo. Como um cachecol de lã que aos poucos vai sendo entrelaçado, o amor próprio foi gradual e conquista cada vez mais espaço na vida dessa senhora que redescobriu o seu valor, e acorda todos os dias disposta a reafirma-lo.
Rota alternativa, o amor que liberta
Os caminhos normativos nem sempre são seguidos, e quando uma mulher toma uma rota alternativa os questionamentos feitos perpassam motivos, quereres e sua coragem para tal. Por vezes, muitas questionam-se acerca do porquê devem seguir o rumo tradicional de constituição familiar e trato doméstico. O passado impôs pontos finais para histórias que elas sequer queriam protagonizar. Reticências se tratam de possibilidades que só os homens poderiam vislumbrar.
Legião Urbana cantou sobre uma Maria Lúcia por quem um transgressor, por amor, seria capaz de todos os pecados se arrepender. A Maria Lúcia que trago aqui não expiou pecados de um amante.
A mansidão que traz na voz, a tranquilidade no semblante e calmaria dos gestos são elementos que compõem a primeira impressão passada por Dona Lúcia. Os cabelos ralinhos e em processo de embranquecimento não são suficientes para entregar seus 70 anos de percurso alternativo pelas estradas da vida. Também filha natural de Santa Rita, na Paraíba, chegou com a família à capital paraibana em 1964, ano em que a democracia dizia adeus e dava lugar ao período de ditadura militar no Brasil. Desde cedo sabe o que é trabalhar fora, seu primeiro emprego foi aos 17 e veio dele a felicidade em poder ajudar os pais de quem fala com tanto carinho a passar por uma grande crise financeira na cidade grande.
A casa das sete mulheres seria um bom nome para apelidar o abrigo de sua família, mas com a mãe o número tornava-se par. Suas seis irmãs e seus dois irmãos não foram suficientes para retirar seu estado interno de solidão desde a infância. Quando jovem, sofria demasiadamente de um mal, na época sem nome, mas com muitas lágrimas. Sentia-se sozinha e insuficiente ao mundo, conta o quanto era calada e tímida, e que aos prantos vivera por longos anos até ser diagnosticada com depressão, essa dita neurológica pelos psiquiatras devido a prematuridade. Com isso veio a melhora, ainda que tenha relutado, hoje entende que os medicamentos são necessários para manter o curso da vida em equilíbrio.
A imposição matrimonial batia a sua porta, e ela acreditava ser o ápice de felicidade e realização que poderia haver na vida. Assim, engatou alguns relacionamentos e com isso pequenas frustrações se alojaram a sua volta. Se questionara o motivo de não ter tido êxito nas investidas românticas, uma delas numa pequena aventura de dois anos morando na Ilha do Marajó, no Pará. Ao som festivo e cativante do carimbó paraense Lúcia engatou um romance com expectativa jovial de que aquele encontro lhe rendesse um futuro de conto de fadas. Talvez não tão idealizado, mas acreditou sim que duraria tempos. Com o término, se perguntou, mais uma vez, o que havia de errado consigo, ainda não havia alcançado a noção de que há vários caminhos a serem seguidos pelas mulheres.
Encontrou respostas em algo que fazia parte da sua vida desde cedo, a espiritualidade. Filha de mãe e pai de muita fé, conta com orgulho o quão generosos eram seus genitores, bem como tolerantes e altruístas. Seu pai, com tamanha credulidade e amor rezava as pessoas, depositando assim as boas energias de sua crença onde passava. Esse legado fez Dona Lúcia achar que seu sentido de vida seria solo, mas nunca sozinha. Passou a visitar a casa das pessoas levando mensagens sobre unidade, amor ao próximo e simplicidade. Levando em conta o cenário político da época, eram palavras confortáveis para quem ouvia.
O tempo passou e suas irmãs foram migrando para novas famílias, todas casaram e ela ficou. Em 1999, realizou algo que mudaria completamente o rumo de sua vida: Na caminhada que seguia diz ter chegado o dia que sentiu que o casamento não lhe faria sentido. Ela chama de ato de amor genuíno, uma revolução interna sobre si e sobre o que acreditava. Daí por diante passou a se dedicar cada vez mais a trabalhos voluntários, e os dias passaram a ter tons suaves de quem transformou o silêncio e a timidez em cuidados com o próximo.
O seu lar é pacato e sempre aberto para receber os que precisam de alguma ajuda, conforto ou até mesmo quem quer apenas ouvi-la contar sua história. O muro baixinho é convidativo por já deixar notável o pequeno jardim com uma linda árvore média e caminhos de rachinhas que levam à entrada. A grande casa de paredes amarelas e móveis antigos em acaju abriga ela e uma das irmãs, viúva. Há 38 anos no mesmo endereço, toda atmosfera do lugar denota sua crença, bem como as diversas fotografias de família que passam a união e indicam o que é realmente importante para as que ali estão, e os que já se foram.
Sobre feminilidade, a palavra liberdade se repete, Maria Lúcia diz ter sido sempre uma mulher livre, e garante que a espiritualidade não lhe impede disso. Nunca foi dona de casa, pouco prendada, foi criada para trabalhar fora desde cedo. Nem mesmo as aulas de crochê e tricô que haviam na escola - feminilidade sendo limitada aos cuidados domésticos desde a infância – foram capazes de torna-la "mulher de casa".
Ainda hoje passa mais tempo fora de casa, acorda às 3h da manhã todos os dias para fazer preces com a irmã, e em seguida se divide nas diversas reuniões e atividades de cunho espiritual. Ama, ainda, ir ao cinema e assistir séries, conversar com os amigos e amigas, além de ser uma internauta sempre atualizada.
E assim mais uma mulher nada contra a corrente, a seu modo, dentro das possibilidades que escolheu para si. Sem amarras, fez da sua vida um ponto fora da curva. É certo que é mais aceitável socialmente devido ao caráter religioso de sua escolha. Mas isso não anula o fato de ter tido que ser forte para pôr um basta as vozes que a diziam ser insuficiente para o mundo e castigavam-na a solidão por não estar ao lado de um marido.
Hoje, com o avançar da idade, sente-se plena e feliz, sequer o recém diagnóstico de um câncer de tireoide a tirou do prumo, pois se diz privilegiada por todos os recursos e liberdade que possui. Os dias passam lentamente para a senhora de alma leve e riso doce, dedicando cada momento pela coletividade que acredita, e tendo a certeza que, enquanto mulher, o seu amor próprio é de extrema importância para amar o outro.