Assim que Arlindo acorda, muitas vezes antes que o próprio sol do Sertão da Paraíba, dispara do conforto do quarto direto para a sala da casa onde mora com a mãe. Por cima do piso de cimento queimado não há televisão, sofá ou qualquer adorno aqui ou acolá. Mas, bem no centro de um dos cantos do espaço, fica um quadro branco – rodeado por ripas emadeiradas, sempre manchado com a tinta dos lápis usados para escrever as lições. É que o lugar usado para descansar, acolher visitas, conversar ou relaxar ganhou outro destino e alguns significados a mais. Continua recebendo pessoas, que nela não só querem estar, mas também aprender. Permanece sala, mas agora de aula.
Após ter a vida transformada pela educação e encontrar nos livros um futuro para sonhar e construir, o jovem sertanejo, de apenas 21 anos, sentiu a necessidade de deixar a zona rural para morar na cidade. A simplicidade continua no caminho dele. Só que o imóvel alugado como casa, agora também é escola, onde ele dá aulas preparatórias para as provas de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). No local, ensina o que aprende no curso de letras, em uma universidade particular, de onde conseguiu uma bolsa. No cursinho, quem quer, paga pelo que aprende. Mas quem não pode, estuda do mesmo jeito.
“Ele gosta muito de ajudar as pessoas iguais a ele, pobres que nem ele”, anunciou a mãe, serena, e com o orgulho tomando conta da voz, enquanto os ensinamentos do filho ecoam a poucos metros no cômodo de trás.
O projeto começou oficialmente em dezembro de 2017, enquanto o paraibano terminava o ensino médio. No entanto, deu os primeiros passos um pouco antes, quando a vontade de entrar na universidade começou a ser cultivada por Arlindo. Em 2015, ele fez o Enem como treineiro pela primeira vez, e atingiu 500 pontos na redação.
Percebeu que o primeiro resultado obtido não o transportaria para os sonhos de cursar direito e letras. Estudou e se dedicou mais. Em 2016, um ano depois, repetiu a prova para treinar mais uma vez e chegou até a pontuação 840 na produção textual. Não parou e persistiu. Em 2017, a nota foi 940, combinação de números que lembra com satisfação, e que ajudaram na entrada para um curso superior.
No meio do caminho, entre a menor e a maior nota, o jovem começou a ser procurado para ajudar colegas e conhecidos, que compartilhavam o mesmo desejo de entrar na universidade. Depois dos bons resultados, surgiu a primeira turma.
Eu sei de onde eu vim. Eu vim da zona rural, onde tudo era negado. É um trabalho muito importante porque surgiu de uma demanda no Sertão. Eu sabia o que faltava na minha cidade. Por isso, eu me tornei professor. Eu faço esse trabalho justamente pra que outras pessoas não passem o mesmo".
É perceptível em cada palavra enunciada pelo jovem, que a escola da vida, para ele, não se apresentou com lições fáceis. As lembranças ainda são inteiras e acessíveis à memória.
Sem água potável em casa, estudante acordava de madrugada para encher baldes antes de ir para a escola
Arlindo é natural do município de São Bento, também no Sertão paraibano, mas se mudou para Paulista, onde a maior parte da família também mora. Viveu na zona rural até 2016. Em 2021, alugou a casa onde também dá aulas.
O jovem contou que aprendeu a ler muito cedo, ainda na escola pública. Se por um lado, havia facilidade para aprender. De outro, vários obstáculos surgiam pelo caminho.
Eu sei o que é acordar cedo pra encher todos os baldes em casa e deixar tudo cheio pra poder ir pra escola, porque na minha escola não tinha água potável. Então a gente acordava duas horas da manhã pra encher os baldes".
Nesse período, ter computador e internet em casa também não era uma possibilidade. Os estudos seguiam só com os livros da escola. Outros conteúdos eram impressos em uma lan house e levados para casa, onde tudo continuava, sem pausa.
Foi uma época difícil. Só que eu não parava de estudar porque eu sabia que ia alcançar um propósito maior do que aquilo".
Dentro de uma teia com inúmeros motivos para parar, Arlindo não só encontrou razões para seguir, mas também para acreditar e transformar a vida dele e incontáveis outras pessoas.
Arlindo é a terceira pessoa da família a entrar na universidade
A universidade não era um destino certo para a família de Arlindo. Entre os parentes, ele foi o terceiro a ingressar em curso superior. A primeira experiência dele foi com o curso de direito, na modalidade presencial, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). A entrada na graduação aconteceu por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Ele estuda no campus Sousa, a quase 100 quilômetros do município de Paulista, onde mora.
Antes de chegar ao ponto de fazer esse trajeto diariamente, o estudante voltou a atenção a uma inspiração que está a um lance de pensamento. Uma prima formada em química não só o motivou, como também incentivou e ajudou em todo o processo.
A relação familiar também interferiu na escolha do curso de direito. Um episódio, logo após o nascimento, fez com que ele crescesse com a vontade de se dedicar a uma profissão que o possibilitasse a oportunizar a defesa de direitos de outras pessoas, por não ter os dele defendidos.
Eu sou filho adotivo. Meu avô não gostava muito do meu pai biológico. Então ele não deixou minha mãe entrar em casa. Ele simplesmente disse que se ela quisesse continuar morando com ele, tinha que me dar pra alguém. Isso foi uma coisa muito marcante na minha vida. Ele não me aceitou porque eu era filho de um negro. Ele negou o direito mínimo que uma criança poderia ter, que era o direito de um lar. Ninguém defendeu a minha permanência naquele lar.
Hoje, para estudar, sai de casa no fim da tarde e chega na madrugada do dia seguinte. As viagens são feitas em um ônibus escolar do município. Para usar o veículo, ele e outros estudantes arcam com as despesas para pagamento da mão de obra do motorista.
A segunda é com o curso de letras, da Universidade Paulista (Unip), na modalidade de ensino à distância. Dessa vez, ele foi selecionado por meio de um programa de oferta de bolsas da própria instituição.
“Decidi fazer letras para me especializar cada vez mais e passar um conteúdo de redação por estudantes e promover um ensino mais dinâmico”.
Nessa condição, ele é parte de um grupo dos mais de 2 milhões de alunos que fizeram com que a educação à distância, pela primeira vez na história, tivesse mais alunos novatos do que o ensino presencial. Os dados são do Censo da Educação Superior e foram divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e são referentes ao ano de 2020.
Conforme o levantamento, dos 3.765.475 alunos matriculados em graduações no país, 2.008.979 optaram pelo sistema de educação à distância, enquanto outros 1.794.158 escolheram estudar de forma presencial. Este último grupo adotou a modalidade remota de modo passageiro, enquanto for necessário por causa da pandemia de Covid-19.
A proporção é de 53,4% de matrículas na modalidade EAD e 46,6% para a presencial. As informações se referem às instituições públicas e privadas.
Partilhando conhecimento, jovem multiplica o que aprende
Dedicação sempre foi uma qualidade presente nas aulas de Arlindo. No fim de 2017, quando ele ainda ensinava redação nas casas dos alunos, alguns pais iam até ele e entoavam um clamor popular: “meu filho tá precisando de ajuda”.
O projeto já tinha alunos bolsistas desde o início. Para todos, os resultados eram positivos. E o trabalho de uma só pessoa fez uma verdadeira revolução em toda a comunidade e em todos os lados do Sertão.
Umas pessoas querem remunerar, outras não podem. Elas estudam da mesma forma, recebem o mesmo conteúdo. O maior propósito é ajudar".
O dinheiro de quem pode contribuir ajuda nos custos com o material necessário para manutenção da iniciativa.
“Não tem nada mais gratificante do que ajudar o outro, ainda mais quando se trata de educação”.
Arlindo começou sozinho, mas a forma com que dá aulas é resultado de muitos ensinamentos. Agora, mais do que nunca, o paraibano não guarda conhecimento. Pelo contrário, ele compartilha, e assim, multiplica o que aprende.
O curso de letras, agora, serve para afinar todos os ensinamentos sobre redação. O aprofundamento na língua portuguesa também proporcionou uma mudança de abordagem para o jovem professor.
Na sala de aula e da casa de Arlindo, os alunos dominam só técnicas, mas como juntá-las na combinação perfeita entre teoria e toda a prática da vida.
“Ensino redação, mostro como usar a criatividade, trazer o cotidiano para o texto”.
O empenho é tanto que ele quase não tem folga. Ensina da segunda até o domingo, nos turnos da manhã e tarde. Tanta coragem e disposição só são possíveis graças à crença forte e viva na educação.
A educação é o caminho, o melhor caminho. Todas as pessoas têm potencial, todas importam. Todos deveriam ser incluídos e, pra isso, a gente precisa da educação com o propósito de transformar vidas. Eu entendo a importância que a educação tem na minha trajetória. A educação que me fez acreditar. E tudo que eu construí aqui hoje eu devo a ela".
‘Entrar na universidade representa estar num assento que não foi feito pra mim’
A avó de Arlindo não teve acesso aos estudos. Os pais dele também não.
Entrar na universidade representa estar num assento que não foi feito pra mim. Representa dar voz ao meu passado, à minha família, à minha ancestralidade. É muito significativo. É saber que cada esforço valeu a pena".
Enquanto vive um sonho, o jovem também enfrenta dificuldades. Já que dá aulas durante o dia, os estudos se concentram mais durante a noite e se estendem madrugada a fora. Para dar conta de tudo, a busca por métodos dinâmicos de estudos é imensa em comparação com as poucas horas de sono que têm. Mas, como o próprio Arlindo faz questão de reforçar, “é bastante puxado, mas tá dando certo”.
Cada esforço, contudo, toma forma de degrau, assim como em uma escada, que pode conduzi-lo até a realização de um sonho mais ousado, e ainda mais necessário.
“Se um dia eu pudesse fazer alguma coisa pela educação do Brasil ou, pelo menos, da Paraíba, seria cuidar do desenvolvimento pessoal dos jovens. Seria uma instituição beneficente em que a gente trabalhasse oratória, escrita, leitura, e sobretudo, cidadania”.
Mas, são tantos sonhos. O principal, talvez nem tenha se dado conta de já ter realizado.
“Meu principal sonho é mudar a vida de uma pessoa, mudar a rota que a pessoa vai seguir. Eu já fiz muitas coisas e quero fazer mais. A gente precisa ter mais esperança nos nossos jovens”.
Enquanto não alcança todos os desejos que têm, ele trata de lembrar das origens para tocar a todos por meio do exemplo.
Quando eu nasci, por tudo que eu já passei, minha vida já tava pré-determinada a dar errado. Graças à educação eu fiz exatamente o contrário pra ela dar certo. Então a educação, na realidade, é pra mim a melhor resposta que alguém pode dar ao mundo. Uma resposta boa, positiva, propositiva de fazer mudança, de fazer o bem acontecer.
Entre tudo o que a educação pode proporcionar, liberdade é algo que Arlindo prega como prioridade. É pregando e sendo exemplo de como ser livre que ele ensina como aproveitar cada oportunidade para plantar no presente para colher bons frutos no futuro.