Comunidade
31 de março de 2022
07:41

Berrando em linhas: Lama, poeta travesti que resiste em cada verso

Nesta quinta-feira (31), Dia Internacional da Visibilidade Trans, conheça a trajetória de uma escritora paraibana que escreve sobre dor e amor.

Matéria por Ana Beatriz Rocha

O grito, por vezes associado a violência, foi sinal de que o desespero tinha de se transformar em força motriz. ‘’Um grito no papel”’, é como a poeta paraibana Lama define sua construção artística desde que começou a escrever em primeira pessoa. Hoje aos 21 anos, conheceu a poesia ainda na escola, quando ser menina era um desafio maior ainda num mundo de negações. 

“Foi como se eu precisasse reafirmar o que eu sentia de forma prática e direta pra mim mesma, já que externamente eu não me via, ou me via muito pouco. A partir do momento que me gritei no papel, eu me experimentei na prática e foi um ato de muitas microrrevoluções contra o sistema, apesar das diversas violências que vieram em resposta”, desabafa a artista.

O sistema, forma impessoal e indireta utilizada por ela para se referir ao todo da sociedade, é a construção que definiu como impróprio corpos como os de Lama. Uma pessoa trans é alguém que não se identifica com o sexo atribuído a seu corpo ao nascer. Existem múltiplas identidades de gênero sendo reconhecidas e pesquisadas.

Tal encontro com a poesia na adolescência foi resultado de um outro processo de autoconhecimento que vivenciava. Ainda nos anos de escola, Lama se percebeu diferente. A diferença não tinha o outro como referência, mas sim o que esperavam que ela fosse. Esperavam que ela atendesse por “ele”, que apresentasse jeitos e gostos que não eram seus. Não deu certo, e a resposta foi a mais comum para pessoas como ela: a violência. 

“Me descobri no ensino médio, o processo foi bem violento e fez com que eu precisasse me retrair para acumular forças para conseguir lidar com a sociedade, aos 18 eu já havia enfrentado questões de violência e repressão. Ao me assumir de vez e estar em contato com outras travas eu me vi declarando pra mim mesma novas proposições de vida”, conta Lama. 

 

Lama começou a dividir os escritos nas batalhas de slam. Foto: Arquivo pessoal

Não se identificando com o que lhe foi imposto no nascimento, a poeta se põe enquanto travesti,  identidade política criada na América Latina para se referir ao reconhecimento feminino de uma pessoa trans. Havendo ou não transições hormonais ou cirúrgicas, ao se considerar travesti o pronome “ELA” é reivindicado, juntamente com o reconhecimento social de toda uma identidade feminina. 

Na escola ansiava por referências escritas, disposta a desbravar livros inteiros em busca de um espelho literário que parecia não chegar. Linhas de Drummond, versos de Augusto dos Anjos, conhecimento que, embora válido, não lhe davam as vivências semelhantes. O sentimento de desencaixe prevaleceu, até que encontrou inspirações do lado de fora, no lugar que insiste em ser berço de grande parte da poesia histórica e anônima do Brasil: a rua. 

“Foi a partir do slam e da poesia de rua que consegui me guiar para o que me seria mais honesto com quem eu sou e como podia me comunicar não só comigo, mas também com as minhas”, conta a artista. 

Slam sempre foi lugar de resistência. Originária dos espaços públicos como as praças, a competição se dá com poetas recitando seus trabalhos autorais e o resultado sendo definido por um júri escolhido previamente. As disputas têm a origem relacionada ao movimento operário dos Estados Unidos, e teriam surgido em um bar de jazz em Chicago, em 1986. 

A tradição se construiu a partir da mescla entre a qualidade do texto e a força da interpretação do artista. Filho das ruas, o slam sempre se encontra com as batalhas de rap e hip hop, ambiente povoado pela juventude periférica que busca na arte possibilidades de socialização, resistência e produção de conhecimento. 

Essa troca com outros artistas fez Lama acreditar que não deveria guardar as coisas que escrevia, decidiu então dividir o trabalho em etapas e pensar nas possibilidades de transformá-las em projeto de vida. 

“Eu nua de cotidianos
Nu dia a dia inflamo
Perdendo tudo que penso que amo
Pra me tocar do que real importa.

Quebram-se as portas
Por ideias tortas
Morte dos prazeres
Mentiras coloniais.

E eu me pergunto em minhas voltas
Se talvez um dia
A trava terá paz.

Não mais.
Não mais.
Não mais.

A paz
É zona de mentiras cabulosas
E de discursos irreais

E eu não sou a porr* da Wanda pow.
Simbora pra guerra que é a vida”

– Lama

Desenvolveu a chamada intelectualidade orgânica, quando o conhecimento pode ser construído através das experiências de vida. Os saberes naturais lhe deram curiosidade para buscar contexto para o que enxergava pelas ruas, foi quando decidiu cursar Serviço Social na Universidade Federal da Paraíba. Novo mundo, a entrada na graduação foi um dos grandes passos para que a arte de Lama se consolidasse como uma das principais partes de sua vida. 

Os muros das universidades brasileiras não costumam ser receptivos com pessoas trans. Segundo dados do Projeto Além do Arco-Íris, do Afro Reggae, apenas 0,02% das pessoas trans estão nas universidades, 72% não possuem o Ensino Médio e 56% não concluíram o Ensino Fundamental. Já de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), apenas 4% dessa população está dentro do mercado formal de trabalho. 

As histórias das mulheres trans e travestis que avançam na graduação e constroem uma narrativa distante da prostituição (maior fonte de renda diante da precarização e violência) costuma ser exceção a regra. Lama não é regra, e se a norma é a dor para pessoas como ela, a poeta corre cada dia mais para longe do que é ‘normal’. Foi desse modo que a universidade mudou sua vida, abriu portas para projetos que mesclam poesia, teatro e outros tipos de arte. 

teatrolama
O teatro chamou atenção de Lama, que passou a se envolver com outras artes.

Da lama ao caos: primeiro livro e um mundo de realizações

Mais de 40 anos separa a publicação de “Eu Ruddy”, da poeta Ruddy Pinho, considerado por muitos o primeiro livro publicado por uma mulher trans, da primeira vez que Lama colocou um obra de poesias no mundo. Intitulado “Da lama ao caos”, o livro foi lançado em 2021 e é dividido em três partes. 

Terra é onde estão as poesias íntimas, retiradas dos seus primeiros cadernos de escritas; Metal, é o espaço de sua identidade travesti como forma política. Na terceira e última parte, o Sopro, ela discorre sobre a construção do futuro, através da personagem “Lama” em uma viagem sobre o caos que a rodeia.

“Escrevi ele a partir de poesias que resgatei do ensino médio e outros textos que escrevi durante a pandemia, como forma de respiro e grito pelo que fica entalado”, relata a escritora. 

 

 

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Os espaços de criação da universidade também proporcionaram contato com as artes cênicas, um lugar onde Lama consegue se expressar ainda que as palavras saiam de cena e o corpo fale por si. Performances que de tanto reverberar de forma íntima viraram música, na canção ‘Annykillação’ ela ritmou versos que antes eram mais ditos que cantados. 

Multiartista, a resistência da paraibana ocupa todas as suas formas de expressão. Na última abertura de editais da Lei Aldir Blanc, criada para dar suporte para artistas durante a crise da pandemia, Lama foi selecionada pela performance “TRANSCYBORGUENORDESTINA”, com 2 poesias e duas músicas. 

“Acredito que a crítica à cisgeneridade aparece no meu trabalho diretamente em cada palavra, a partir do momento em que minha vivência não é cis, até porque eu só falo sobre o que eu vivo”, afirma. 

Até hoje as ruas são a principal inspiração de Lama. Não o asfalto por si só, mas a dureza e leveza, na mesma medida, da arte dos slams que ocupam as praças. 

 

Já me inspirei em clássicos como Augusto dos Anjos, mas hoje me inspiro principalmente nas minhas, que estão vivas e produzindo arte AGORA, que tem a visibilidade negada”, defende.
Lama

A poeta prepara agora uma nova publicação, mais poesias sobre as vivências cotidianas. Ela diz que escreve, sobretudo, o que precisa ler sobre si. Questionada sobre sonho, sobre futuro e continuidade, viver do que escreve segue sendo o maior anseio de uma jovem que ainda está no início de tudo. 

“As reinvenções tem me sugado mais do que nunca e isso tem me feito não ter esperança, muitas vezes, com a arte. Meu maior sonho, pelo contrário dos estigmas e estatísticas, é ser bem sucedida e conseguir me propor vida, assim declarando possibilidade de vida (para além de sobrevivência) para todas as minhas.”

 

 

Poesia é sinônimo de resistência? 

Na escola, as correntes literárias são ensinadas como constantes rupturas. Um período histórico pode ser envolto por novidades quanto à arte escrita, e foi comum, ao longo dos séculos, uma sequência de superar o modo como era feito na etapa anterior. Isso pode ser lido como uma forma de adequar o fazer literário a outros aspectos culturais, e até mesmo as mudanças sociopolíticas. 

Para além desses motivos de separar o que era feito, a poesia, por si só, caminha atrelada à transgressão. Segundo a pesquisadora Moama Marques, doutora em literatura, essa quebra começa pela língua. 

Não que os demais gêneros literários não nasçam dessa insubmissão. Mas a poesia, de modo mais geral e recorrente, costuma elevá-la ao máximo. E esse gesto de transgressão da língua provoca a transgressão de outros códigos; desestabiliza-se a língua para desestabilizar um corpo mais rígido do mundo, criando outros”
Moama Marques

Apesar dessa relação de transgressão, por muito tempo a poesia esteve atrelada a grupos privilegiados da sociedade. No entanto, os debates sociais nunca estiveram fora das muitas obras célebres da história da literatura brasileira. Nesse sentido, o gênero costuma ser utilizado para levantar temas necessários para construção de uma sociedade igualitária, como acrescenta a professora Moama Marques:

“A poesia pode operar como uma espécie de anti pedagogia. Convocando outros modos de ver e de dizer o mundo, que não apenas aquele que sempre foi ensinado pela via de uma narrativa única. Ao entrarmos em contato com uma certa poesia de autoria feminina feita hoje no Brasil, por exemplo, compreendemos melhor essa importância”, finaliza.