Comunidade
22 de maio de 2022
11:04

Auxílio-reclusão: impactos da suspensão do que Bolsonaro chama de “salário do crime”

Presidente listou a suspensão do subsídio como uma das metas do governo em 2022. Na discussão pesam os danos para famílias de baixa renda e o alargamento da violência.

Matéria por Ana Beatriz Rocha

Poliana Sousa tem 33 anos e quatro filhos. Desses, três dependem dela, que precisa do auxílio-reclusão para sustentar a casa. Moradora da comunidade Nova Morada, em Mangabeira 8, a dona de casa chegou em João Pessoa há cerca de nove anos, e há 7 recebe o suporte do governo. O benefício atende familiares, de baixa renda, de pessoas privadas de liberdade cujo sustento era proveniente de quem foi preso. 

Conforme os dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Poliana é uma das 789 pessoas beneficiadas pelo subsídio na Paraíba. O órgão regula o auxílio porque ele é destinado para contribuintes do tributo que cometem delitos e vão à prisão, ou desempregados que tinham relação de segurado quando perderam a liberdade. 

No atual governo, o número de famílias beneficiadas pelo auxílio-reclusão caiu pela metade. De acordo com os índices do INSS, em dezembro de 2021, pouco mais de 23 mil famílias de trabalhadores presos recebiam o benefício. Anteriormente, quase 47 mil pessoas contavam com suporte para cuidar da família. 

O presidente Jair Bolsonaro sempre deixou claro um descontentamento com o benefício, e foi assim que atuou por alterações na legislação que endureceram o acesso ao auxílio. A Medida Provisória 871/2019, editada pelo presidente, alterou a Lei 8.213/91, restringindo os critérios para ter acesso ao auxílio previdenciário.

Uma portaria da Casa Civil publicada no Diário Oficial da União em fevereiro deste ano lista 45 matérias legislativas que o Palácio do Planalto espera que sejam aprovadas em 2022. Entre elas está o fim do auxílio-reclusão para dependentes de trabalhadores presos, por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2019.

Presidente Jair Bolsonaro sempre foi um crítico ferrenho do auxílio-reclusão. Foto: Reprodução

Quais os impactos do fim do benefício?

Voltando a Poliana, sem o auxílio-reclusão, a família teria visto, ao chegar na Paraíba, o rosto da fome. Ela veio do Ceará em 2013, com dois dos três filhos que moram com ela hoje. À época, a sogra deu entrada nas documentações para que a família recebesse o benefício depois que seu companheiro foi preso. 

Atualmente o marido está recluso há anos, na época a Paraíba não guardava para Poliana nenhum parente, e arrumar um emprego era um sonho quase impossível. 

“Eu não tinha família aqui, nem estudo nem conhecimento de nada. Era a única forma de renda, na época foi difícil até pra arrumar escola pras crianças, não conhecia nada”, explica a mulher.

No Ceará havia trabalho para Poliana, uma vida simples com a qual estava, minimamente, habituada. Em solo paraibano, encontrou uma solidão acalmada pelo recurso previdenciário do qual teve direito.

A altura dos ouvidos de Poliana, “salário de bandido”, é como muitos chamam o auxílio-reclusão. Esse pensamento, quando reproduzido, mostra a face de uma sociedade pouco informada em relação ao benefício. O suporte financeiro, no valor de um salário mínimo (que está tabelado, atualmente, em R$ 1.212,00) cumpre critérios de distribuição. 

Visitantes em presídio da Paraíba (Foto: Divulgação)

Quem ajuda a listar os critérios para ter acesso ao benefício é Edivanildo Nunes da Costa, advogado especialista em direito previdenciário. Ele explica que para família do preso receber o valor, alguns requisitos em relação ao INSS precisam estar em dia:

>> o preso deve estar contribuindo com o INSS seja, por exemplo, como empregado, contribuinte individual, facultativo, segurado especial (agricultor e pescador);

>> carência de 24 meses de contribuições. Isso significa que, antes da prisão, o segurado deve ter contribuído com o INSS por, no mínimo, 24 meses;

>> estar recolhido em regime fechado. Regime semiaberto dá direito ao benefício somente quando a prisão ocorreu até 18/01/2019 e regime aberto não dá direito ao benefício;

>> segurado preso comprovar ser de baixa renda. O critério de baixa renda é fixado pelo INSS todo ano e, atualmente, a Portaria SEPRT/ME nº 477/2021, atribuiu o valor de R$ 1.503,25 em 2021.

Ficando nítido os critérios, quais são as pessoas relacionadas ao privado de liberdade que tem direito ao auxílio?

>> Cônjuge;

>> filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou que seja uma pessoa com deficiência intelectual ou outra deficiência grave; 

>> os pais; 

>> o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou que seja uma pessoa com deficiência intelectual ou outro tipo de deficiência grave.

Outro ponto importante, que costuma causar desinformação, é sobre a duração do auxílio. Conforme o advogado Edivanildo, o benefício dura enquanto o segurado estiver preso em regime fechado. Então, o pagamento cessa em caso de fuga do preso, soltura ou mudança de regime. Já para o caso do filho ou filha ser dependente do recebedor, o auxílio é suspenso quando o filho completar 21 anos, exceto se for uma pessoa com deficiência intelectual ou outro tipo de deficiência. 

Auxílio-reclusão e o sonho do seu fim 

Constitucional, o benefício vem sendo ameaçado nos últimos anos. O auxílio-reclusão é um subsídio da previdência social, previsto na Constituição Federal e regulado pela Lei de Benefícios da Previdência Social – Lei nº 8.213/91 de 24 de junho de 1991. São mais de 30 anos de direito garantido, suporte que está ameaçado desde o início da gestão de Jair Bolsonaro. 

O presidente nunca negou que o benefício previdenciário era algo que lhe incomodava. Com argumento de que isso seria “compensar o crime”, o gestor tem como pautas de sua campanha para este ano o fim do auxílio-reclusão. 

Benefício é direito constitucional. Foto: Reprodução

A legislação brasileira trata, no entanto, o direito como uma forma de não transferir a punição da pessoa privada de liberdade para os membros de sua família. De acordo com Jeferson Trindade Borges, advogado criminalista, pesquisador em segurança pública e criminologia, o enfraquecimento do subsídio impacta diretamente na vida dos familiares do preso.

“É preciso ter em mente que se tratam de famílias pobres que recebem o auxílio. Falamos do projeto de intensificação da pobreza e por consequência, da dificuldade de acesso à direitos básicos e a flexibilização da própria dignidade da pessoa humana, que é tão relativizada quando se trata de famílias pobres e marginalizadas”, alerta o especialista. 

Quando a pobreza se alarga, a desigualdade social provoca contextos problemáticos para sociedade como um todo. Seja pela fome de quem fica sem recursos, pelo emprego precarizado como única alternativa de sobrevivência, ou pelo alargamento da criminalidade. 

Em uma analogia com um outro benefício que chegou ao fim na atual gestão, uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) atestou que um dos impactos positivos do Bolsa Família era a redução dos homicídios e das hospitalizações por agressão nos municípios onde o subsídio chegava de forma intensa. 

Conforme os dados do levantamento feito num espaço de oito anos, nos municípios em que o alcance do programa de transferência de renda do Governo Federal chegava a 70% da população, a redução dos homicídios foi, em média, de 17% em 12 meses. Após quatro anos, os assassinatos caíram 24%. A mesma tendência foi observada no número de hospitalizações por agressão nessas cidades: em um ano, o índice caiu, em média, 8% e, após quatros anos, recuou 25%. 

Adentrando em outro dado relevante, hoje, no Brasil, segundo o relatório mais recente do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), o tipo penal mais incidente nas condenações a penas privativas de liberdade é de crimes contra o patrimônio (39,72%), seguido por crimes relacionados às Leis de Drogas (30,28%). Para o pesquisador Jeferson, os números são um indicativo de que “a baixa renda e a falta de oportunidade digna no mercado formal são fatores que cooperam para a inserção de pessoas na criminalidade”. 

Quem sofre com o fim do auxílio?

Poliana, ouvida nesta reportagem, é chefe de uma das 23 mil famílias que ainda recebem o auxílio, conforme os números de 2021 do INSS. A regra, segundo ela, é abandono para familiares de pessoas privadas de liberdade. Na solidão de quem não quer ver a punição do companheiro estendida aos seus filhos, insistiu para que o recurso sempre fosse mantido. 

A cor do cárcere brasileiro é preta, a renda dos presos do país é baixa. De acordo com os índices do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Infopen, 55% dos presos possuem de 18 a 29 anos, 61,67% são autodeclarados negros e 75% possuem até o ensino fundamental completo. Desse modo, as famílias a perderem o auxílio-reclusão, no caso de seu cancelamento, são pretas, pobres e moradoras de periferia. 

“Toda ação de enfraquecimento de subsídio/assistência é um projeto de produzir sofrimento e extermínio de pessoas pobres. […] É importante que se ressalte que o número de presos que fazem jus ao benefício é muito ínfimo, relatórios apontam que em 2020 menos de 5% de todos os presos preenchiam os requisitos para receber o benefício”, destaca o pesquisador Jeferson. 

O especialista define essa dimensão como uma das provas da importância de políticas de assistência social no Brasil. As medidas não estão destinadas à resolução estrutural da problemática, no entanto, se põem como uma forma de garantir a manutenção da dignidade da população em geral. 

Como advogado criminalista, Jeferson conhece de perto a realidade das famílias das pessoas privadas de liberdade. Ele é capaz de elencar diversos desafios diários:

“O corte que o presidente pretende fazer, sob a égide de acabar com o “bolsa presidiário e fazer justiça”, é mais uma retaliação que os familiares sofrem apenas por serem familiares de preso, sem ter colaborado em nada para a prática do delito que o apenado cometeu”, explica. 

 Quase 70% dos presos brasileiros são homens negros. Foto: Rizemberg Felipe 

A Constituição Federal guarda o princípio constitucional da individualização da pena, que determina que ela não pode passar da pessoa do condenado (art. 5º, inciso XLV, CF/88). Apesar disso, Jeferson afirma que esse trecho é, rotineiramente, desconsiderado, de forma que os familiares sofrem com uma série de violações sociais e institucionais a partir do momento que alguém da sua família é preso.

Há desafios desde a locomoção, visto que é comum, em muitas cidades, que os ônibus não circulem ou não parem nas proximidades de presídios, dificultando o processo de visitação. Os beneficiários do auxílio-reclusão enfrentam, ainda, uma constante ameaça de corte ou redução. 

O advogado criminalista ressalta, ainda, outros embargos:

“Além disso, as famílias lidam com a estrutura da prisão que é violenta pela própria natureza, sofrem represálias dos agentes de segurança, são desrespeitados, têm dificuldade no acesso à informações sobre o processo judicial do seu familiar. Uma série de violações e dificuldades se colocam frente à sua relação com o Estado, seja no âmbito administrativo, seja no âmbito judiciário”, destaca. 

Diante dos riscos de fim do benefício, familiares de pessoas privadas de liberdade, bem como advogados e defensores públicos buscam ressaltar a importância do suporte e do combate à desinformação. 

“Grande parte da sociedade enxerga o auxílio como um ‘salário-crime’, porque entende que ele se volta para a pessoa presa, que receberia o dinheiro do auxílio. Esses discursos equivocados são replicados e circulam numa velocidade muito grande, favorecendo a criação desse fantasma no imaginário social sobre o benefício”, lamenta Jeferson Trindade. 

Até o momento, o auxílio-reclusão pode ser solicitado diretamente pelo dependente do recluso através do site ou aplicativo “Meu INSS”. Pode ser solicitado, ainda, por meio do telefone 135. Orientações podem ser consultadas, caso seja possível, através de um especialista em direito previdenciário. 

O marido de Poliana Sousa está, agora, em regime semiaberto, cumprindo com a jornada de trabalho na atuação como catador de materiais recicláveis. Com essa nova etapa eles se preparam para, em breve, perder o direito ao auxílio-reclusão. Poliana sabe que esse é um caminho natural. 

“É minha única fonte de renda, se acabar vai ser ruim, mas pelo menos tô habituada aqui. Mas se eu nunca tivesse tido teria sido muito mais difícil, quase impossível”, desabafa. 

** Ilustração da capa: Renata Costa, da Universidade Federal de Santa Maria.