COTIDIANO
Falou e disse: Sobre a unidade do parágrafo
Publicado em 09/02/2015 às 13:36
O professor Chico Viana associa a variedade de temas própria da crônica com reflexões e comentários sobre a língua portuguesa. Contato com a coluna: [email protected]
Sobre a unidade do parágrafo
O parágrafo é um dos mais importantes componentes do texto. Estrutura-se a partir de uma ou mais sentenças que servem de tópicos. Conforme o nome diz, o tópico orienta e limita o comentário que vem depois. Constitui um parâmetro de que o redator não pode se afastar.
Entre os problemas mais comuns na estruturação dos parágrafos, estão:
1 - a confusão entre parágrafo e período. Nesse caso o redator escreve uma frase e muda de linha, deixando de desenvolver o tópico frasal;
2 - a falta de articulação entre o tópico e o comentário;
3 - a redação de parágrafos longos, em que há duas ou três ideias principais;
A passagem seguinte constitui um exemplo do segundo caso:
“Como dizia Nicolau Maquiavel, ‘os fins justificam os meios’. Não teríamos conseguido progredir na vida intelectual e moral se não tivéssemos sido influenciados pelos nossos pais e amigos. Se hoje temos ética, isso veio das influências transmitidas por aqueles com quem convivemos. Como a escola determinista acreditava, o homem é em grande parte fruto do meio em que vive.”
A frase de abertura, atribuída a Maquiavel, não se liga ao comentário subsequente. O aluno destaca a partir do segundo período a influência positiva de pais e amigos na formação dos jovens. O maquiavelismo diz respeito a situações em que o espírito pragmático deve preponderar sobre valores éticos ou sentimentais. Isso também, por sinal, nada tem a ver com determinismo.
A passagem abaixo, em que há mais de uma ideia principal, é um exemplo do terceiro caso:
“Existe uma relação entre o consumismo e a baixa autoestima. Geralmente a baixa autoestima e a depressão são curadas indo às compras, pois o objeto novo nos transmite a ideia de vida nova. O prazer que se sente ao comprar um objeto é gerado pela liberação de endorfinas, que vão atuar no nosso humor. O comércio é o setor da economia que mais cresce com o consumismo, gerando empregos e desenvolvendo a indústria de bens de consumo.”
No tópico o aluno se refere à relação entre consumismo e baixa autoestima. Para se manter coerente, deveria desenvolvê-lo procurando demonstrar esse vínculo, que por sinal é hoje muito enfatizado por psicólogos e demais estudiosos do comportamento humano. As explicações apresentadas no início atendem à coerência: objetos recém-comprados nas lojas dão a sensação de vida nova, o que momentaneamente eleva a autoestima. Da mesma forma, o prazer de comprar libera substâncias que produzem bem-estar e euforia.
O problema é o que vem depois. A ideia de que o comércio cresce com o excesso de consumo, pois tal excesso desenvolve a indústria e gera empregos, está ligada ao assunto mas nada tem a ver com a frase de abertura. Constitui a introdução de um novo parágrafo, que poderia destacar uma contradição: o consumismo é prejudicial ao servir de alternativa para as pessoas que se amam pouco, pois constitui um falso recurso terapêutico, no entanto traz ganhos para a economia do país.
DE OLHO NO VESTIBULAR
“É normal que a sociedade seja mais tolerante a certos vícios que a outros, pois há dependências menos mal que outras.” (Redação de aluno)
Na passagem acima há um problema de regência nominal. Quando o assunto é vício ligado a drogas, costuma-se distinguir “tolerante a” de “tolerante com”. A “tolerância (ou intolerância) a” diz respeito à possibilidade de o usuário suportar ou não os efeitos da substância. Já a “tolerância com” se refere ao juízo moral que se faz do seu uso. Ser tolerante com as drogas é não recriminar o usuário. Existe ainda nessa passagem um problema morfológico. O aluno usou o advérbio mal em vez do adjetivo maléfico.
Eis a frase corrigida: “É normal que a sociedade seja mais tolerante com certos vícios que com outros, pois há dependências menos maléficas que outras.”
TIRE SUA DÚVIDA
E-mail de Marli C.: “Professor, o correto é ‘Tratam-se de problemas antigos’ ou ‘Trata-se de problemas antigos’? Obrigada.”
O correto é “Trata-se de problemas antigos”, pois com verbos transitivos indiretos, ou seja, os que pedem preposição antes do objeto, o “se” indetermina o sujeito; e um dos meios de fazer isso é flexionar o verbo na terceira pessoa do singular.
O FINO DA PROSA
“O homem é divino, desde que sente. É o sentimento de Deus. Deus o criou para sentir por intermédio dele. (...) O homem que fracassasse quanto ao sentimento aviltaria a Deus, seria a causa da derrota da força viril de Deus, a causa de uma catástrofe cósmica, de um horror inimaginável...”. (Thomas Mann, em “A montanha mágica”)
PALAVREANDO
Há interesses do bolso e interesses do coração. Mas tudo é interesse.
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Quando nos acharmos preparados para a vida, já não há haverá tempo, pois todo ele terá sido gasto na preparação.
Originalmente publicado no Jornal da Paraíba, no dia 1 de fevereiro de 2015.
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