A metade mais ácida da Laranja Mecânica

Edição especial de aniversário do romance ‘Laranja Mecânica’ do britânico Anthony Burgess é lançada no Brasil com material inédito.

Meio século depois de lançar seu romance sobre a cura da delinquência juvenil, a 18ª obra do britânico Anthony Burgess ganha uma edição especial de aniversário no Brasil. Laranja Mecânica (Aleph, 352 páginas, R$ 79,00) apresenta material inédito por aqui para a edição comemorativa.

A obra é uma perturbadora confissão autobiográfica de Alex, líder de uma gangue adolescente que pratica uma série de delitos em uma sociedade de um futuro não determinado. Entre assaltos, espancamentos e estupros, o jovem ‘involuntariamente’ comete um homicídio.

Capturado pela polícia, Alex é submetido à chamada Técnica Ludovico, uma terapia cuja finalidade é reeducá-lo psicológica e socialmente, eliminando seus impulsos violentos e seu comportamento hostil. Uma experiência tão desumana quanto a violência que ele próprio costumava promover.

Com um acabamento luxuoso em capa dura, sobrecapa e impressão em duas cores – preto e laranja –, o livro conta com ilustrações criadas exclusivamente para esta edição brasileira. O conterrâneo de Burgess, Dave McKean, ilustrou três cenas da primeira parte. McKean é conhecido pela colaboração com o amigo e escritor Neil Gaiman, principalmente pelas capas de Sandman. Já quem ofereceu sua visão para a segunda parte do livro foi o brasileiro Angeli, cartunista criador de personagens como Rê Bordosa. Já a última parte teve três momentos criados no traço do animador e quadrinista argentino Oscar Grillo.

Assim como a edição especial inglesa, a brasileira apresenta a versão restaurada, onde alguns trechos e palavras foram reintegrados, outros eliminados ou substituídos pelo minucioso trabalho de comparação do editor Andrew Biswell, diretor da Fundação Internacional Anthony Burgess.

As 80 páginas de extras de Laranja Mecânica incluem notas culturais ao livro, redigidas por Biswell. Entre os apontamentos, estão citações shakespearianas e bíblicas, alusões a Ludwig van Beethoven e a ojeriza do autor sobre ícones da música pop como Elvis e Beatles (“Esse nome será conhecido quando o livro sair?”, chegou a escrever na margem do manuscrito original em relação ao ‘Rei do rock’).

Há também ensaio e artigos escritos pelo próprio Burgess, entre 1961 e 1973, nos quais explica o porquê de escrever a obra, além de comentar o filme homônimo de Stanley Kubrick de 1971 e justificar os motivos de escrever uma versão para o teatro na forma de musical, no começo dos anos 1990.

Sobre o igualmente famoso filme oriundo de seus escritos e estrelado por Malcolm McDowell como o arruaceiro Alex, o autor escreveu: “Um típico filme de Kubrick, tecnicamente brilhante, profundo, relevante, poético, de abrir a mente. Para mim, foi possível enxergar a obra como uma nova reinterpretação radical do meu próprio livro, não uma simples adaptação, e isso – a sensação de ser impertinência proclamá-lo como Laranja Mecânica de Stanley Kubrick – é o maior tributo que posso fazer à maestria kubrikiana”.

Fechando os extras inéditos no Brasil, uma entrevista com Burgess concedida há 40 anos e reprodução de páginas do original datilografado, com anotações e desenhos do escritor.

GESTAÇÃO BABILÔNICA
“Ouvi a expressão ‘tão estranho quanto uma laranja mecânica’ pela primeira vez em um pub londrino, antes da 2ª Guerra Mundial”, justificava em um ensaio de 1973 o autor, comentando sobre o batismo de seu livro mais famoso. “Trata-se de uma gíria cockney (termo usado para definir os habitantes de uma área pobre de Londres) antiga que se refere a uma esquisitice ou insanidade tão extrema que chega a subverter a natureza – afinal, que noção poderia ser mais bizarra do que uma laranja mecânica?”.

Anthony Burgess escrevera seu violento romance que satirizava à sociedade inglesa em uma espécie de ‘frenesi literário’ (não era à toa que admirava os fluxos de consciência e alusões literárias de James Joyce). Diagnosticado com poucos anos de vida no final da década de 1950, escrevia montanhas preocupado em deixar recursos financeiros para a esposa após a sua morte. Chegou até 1993, quando morreu aos 76 anos. O último suspiro da sua mulher aconteceu em 1968.

Para mostrar a evolução da linguagem e inserir o leitor no universo particular e futurista do livro, Burgess inventou o nadsat, derivado de termos eslavos, do falar pseudoelizabetano (uma aproximação do rigor formal presente nas peças do Século 16 de Shakespeare e Marlowe) e das palavras rimadas que exigem certa dedução para a interpretação (e um glossário no final da publicação).

A edição especial de Laranja Mecânica tem a mesma tradução da versão de 2004, quando a Editora Aleph adquiriu os direitos. O trabalho ficou a cargo do escritor e jornalista Fábio Fernandes, que assina um texto introdutório sobre a tradução para o português.

Das primeiras leituras do original até a última revisão foi uma ‘gestação’ de nove meses. Fernandes faz um apanhado de como o autor criou tal vocabulário, como aportuguesou certos termos para o melhor entendimento, o máximo de fidelidade e o mínimo de perdas na tradução de uma das obras inglesas mais significativas do futuro distópico, ao lado de clássicos como 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.