A bossa encontra o jazz

Há 50 anos, time de brasileiros notáveis ajudava um saxofonista de prestígio a conceber um marco no jazz norte-americano.

Segundo relatos da época, foram 2 dias tensos. No A&R Studios, em Nova York (EUA), o brasileiro João Gilberto berrava em alto e bom português: “Tom, diga a esse gringo que ele é um burro”.

Diplomaticamente, Tom Jobim (1927-1994) entregava uma outra versão ao saxofonista norte-americano Stan Getz (1927-1991): “Stan, o João está dizendo que o sonho dele sempre foi gravar com você”. O destinatário devolveu, incrédulo, um “engraçado… pelo tom de voz, não é isto que ele está dizendo”.

O diálogo, reproduzido no obrigatório Chega de Saudade – A História e as Histórias da Bossa Nova (Cia. das Letras), de Ruy Castro, teria acontecido entre os dias 18 e 19 de março de 1963, quando Getz se encontrou com Gilberto na companhia dos brasileiros Jobim (piano), Astrud Gilberto (vocal), Milton Banana (bateria) e do americano Tommy Williams (baixo).

Portanto, há 50 anos, esse time de brasileiros notáveis ajudava um saxofonista de prestígio a conceber um marco no jazz norte-americano: Getz/Gilberto (Verve, 1964), primeiro disco do gênero a levar um Grammy de Melhor Álbum, além de vários outros prêmios, incluindo Música do Ano para ‘The Girl From Ipanema’.

O LP deu trabalho para sair. Os perfeccionistas João e Stan não se entendiam sobre que take deveria ir para o disco e, mais tarde, o baiano acusaria o norte-americano de aumentar o volume do sax na mixagem, só para que seu instrumento ficasse em primeiro plano.

O disco hibernou por meses na gaveta do produtor Creed Taylor, que hesitou em lançar o álbum, algo que só veio a ocorrer no início de 1964. O motivo, aponta Ruy Castro, é que o disco anterior de Getz com brasileiros, Jazz Samba Encore!, gravado com Luiz Bonfá e Jobim, não emplacou. Taylor temia que acontecesse o mesmo com Getz/Gilberto.

O LP seria lançado com oito clássicos da música brasileira: entre canções de Tom e Vinicius de Moraes, o repertório ainda abraçaria ‘Para machucar meu coração’, de Ary Barroso, e ‘Doralice’, de Dori Caymmi e Antônio Almeida.

João Gilberto canta em português todas as faixas. Mas Creed Taylor queria alguém cantando em inglês. É aí que entra em cena a jovem Astrud Gilberto, de 23 anos.

Cantora amadora e namorada de João, ensaiava voos altos, com aval do namorado. Com boa pronúncia, Astrud ajudaria a tornar ‘The Girl From Ipanema’ um clássico. “Seu vocal infantil e ofegante se tornou uma das performances definitivas do século 20”, apontou o crítico inglês John Lewis no livro 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer (Sextante). Ela também comparece nos vocais de ‘Corcovado’, rebatizada nos EUA como ‘Quiet nights of quiet stars’.

A parceria deu tão certo que Taylor optou por lançar um single apenas com os vocais de Astrud, tanto para ‘Garota de Ipanema’, quanto para ‘Corcovado’. Ambos os singles integram a última edição em CD de Getz/Gilberto lançada no Brasil em 2005 pela Universal Music.

‘THE COMPOSER PLAYS’
Mais sorte teve Tom Jobim. Depois das gravações de Getz/Gilberto, o notável pianista carioca ficou pelos Estados Unidos. Foi quando, em maio, Creed Taylor o convidou para voltar ao mesmo A&R Studios para gravar seu primeiro disco americano: The Composer of Desafinado, Plays.

Também lançado pela prestigiada Verve, o LP foi gravado quase dois meses depois, dias 9 e 10 de maio de 1963, e lançado naquele mesmo mês, com irretocável repertório de 12 standards de Bossa Nova, todos em temas instrumentais com belíssimos arranjos de orquestra escritos e executados pelo maestro alemão Claus Ogerman – que se tornaria um grande parceiro de Jobim em disco.

“O LP recebeu as cinco estrelas que a revista Down Beat (prestigiada publicação de música) conferia às obras-primas e o crítico Pete Welding lamentou que não tivesse mais estrelas em catálogo para dar ao disco”, recorda Castro em seu livro.

Este ano, o cinquentenário de The Composer… será lembrado em uma turnê especial da cantora Vanessa da Mata. Ela fará releituras para as faixas do disco em shows gratuitos que irão passar por Salvador, Recife, Brasília, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro.