Com ‘A primeira noite do crime’, série abandona violência fácil e se atreve a tomar partido

Apesar de falho, filme reflete um discurso contundente que denuncia o racismo num Estados Unidos pós-Trump.

a primeira noite do crime
Em A primeira noite do crime, a sociedade americana está doente – mas só alguns sofrem os sintomas.

RESENHA DA REDAÇÃOA PRIMEIRA NOITE DO CRIME (EUA, 2018, 97 min.)
Direção: Gerard McMurray
Elenco: Y’lan Noel, Lex Scott Davis, Joivan Wade
★★★☆☆

Racismo, opressão de classes e muita violência são os ingredientes de A primeira noite do crime (The first purge), filme que estreia nesta quinta-feira (27) nos cinemas de João Pessoa. O longa, dirigido por Gerard McMurray e escrito pelo criador da franquia, James DeMonaco, vai agradar aos fãs da série e tem certo apelo ao público em geral – apesar de suas falhas.

A primeira noite do crime se passa antes dos eventos dos filmes que compõem a trilogia original. Num Estados Unidos caótico, quebrado por uma grande crise e com índices de desemprego alarmantes, o infame partido Novos Pais Fundadores da América (NFFA) alcança o poder com um discurso populista de renovação política. Entre as medidas do partido está a realização de um teste em que, durante uma noite, a população possa cometer qualquer tipo de crime sem nenhum tipo de punição.

O filme apela principalmente pelos paralelismos que constrói com a sociedade americana atual. Fica claro, desde o início, que o governo da NFFA espelha a administração do presidente Donald Trump – ambos são baseados em discursos superficiais e moralistas, procurando alimentar medos e paranoias infundadas na população (hábito descrito, em inglês, pela palavra fearmongering) para justificar atos que, em qualquer outro contexto, seriam impensáveis (é impossível não pensar, também, no Brasil dos dias de hoje…).

>>> Confira os filmes em cartaz nos cinemas da Paraíba nesta semana

O governo do NFFA faz de tudo para vender a noite do crime como um experimento necessário e positivo para a sociedade; mas, como todos os tiranos travestidos de democratas, a justificativa inicial para o “experimento social” não tem nenhuma lógica e não se sustenta. A priori, isso pode parecer uma falha do roteiro (e talvez seja); mas em tempos em que muros, gaiolas para crianças e apoio à tortura são aceitos por grande parcela da população no mundo real, uma proposta em que crimes possam ser cometidos à vontade não soa tão inverossímil assim – muito pelo contrário, parece assustadoramente próxima (além disso, as reais intenções do governo são reveladas posteriormente).

No filme, o experimento da primeira noite do crime é restrito à ilha de Staten Island, uma das divisões administrativas da cidade de Nova Iorque conhecida historicamente pela ocupação de imigrantes e minorias e por ter sido desprezada pelas autoridades. A escolha da ilha não é inócua, e A primeira noite do crime torna-se difícil de assistir ao retratar o extermínio de populações pobres, negras, e latinas – justamente as camadas sociais que mais sofrem com a violência nos EUA, cujo presidente tem a mania de comparar negros e latinos a ladrões e estupradores.

Para além das implicações sociais, A primeira noite do crime deve agradar aos fãs de gore, ainda que as doses de violência só comecem a ser efetivamente aplicadas a partir da metade do filme. O que é um ponto positivo: ao invés de ceder à fórmula fácil que já agradou ao público nos três outros filmes, este episódio cede um momento de pausa para explicar as motivações, tensões e contradições que levaram a uma situação aparentemente tão absurda.

a primeira noite do crime
Lex Scott Davis como Nya em A primeira noite do crime.

O que nos leva inevitavelmente à maior falha do longa: as personagens.  O roteiro até tenta imprimir a elas certa profundidade, e o coração dos dois protagonistas, Dmitri (Y’lan Noel) e Nya (Lex Scott Davis), certamente está no lugar certo (apesar do primeiro ser um traficante de drogas que não tem problema em assassinar seus inimigos), mas elas simplesmente não cativam e são bastante clichês: Dmitri é a figura clássica do homem criminoso-mas-bonzinho que tem tudo para salvar o dia e refletir sobre seus erros; Nya é a ex-parceira socialmente engajada, perfeita em todos os aspectos, uma voz de decência num mundo de desviados. A dinâmica que se estabelece entre os dois é extremamente previsível. Por sua vez, as personagens secundárias parecem que estão ali apenas ou para serem burras, como o irmão de Nya, Isaiah (Joivan Wade); ou loucas, como o “Esqueleto” (Rotimi Paul); ou para servir de alívio cômico que nem sempre funciona, como a amiga Dolores (Mugga). Como resultado, você não se importa realmente com nenhuma daquelas pessoas que estão ali lutando por suas vidas.

As atuações são apenas medianas (Lex Scott Davis parece inexpressiva durante todo o filme), e embora a direção de McMurray tenha momentos de inspiração, como a cena em que Dmitri luta com membros de uma milícia em uma escadaria, também há escolhas questionáveis que acabam se tornando de mau-gosto, como um sangue claramente artificial que espirra na tela em algumas cenas.

Embora fraco em personagens, o trunfo de A primeira noite do crime reside em nos aproximar daqueles indivíduos enquanto comunidades que sofrem e resistem, superando a receita divertida mas batida dos filmes anteriores. Violência por violência não basta. Negros, latinos, pobres, mulheres: existem pessoas que estão sofrendo por discursos, por ações e por omissões; por uma força opressiva exercida não apenas por autoridades e governos, mas por nós mesmos: por nossos professores, por nossos vizinhos, pelo caixa do supermercado. Negar isso, numa tentativa tola ou má-intencionada de equalizar todos sob o rótulo genérico de “humanos”, é tão violento quanto enterrar uma faca ou uma bala no corpo de alguém.