OPINIÃO: ‘Se Deus vier, que venha armado’

Jamarrí Nogueira faz reflexão sobre posicionamento de igrejas cristãs sobre armas e discurso de violência.

Impressionante como membros de igrejas cristãs (em várias denominações, católicas e protestantes) teimam em defender um discurso de violência. Historicamente, as lideranças cristãs são responsáveis por agressões e mortes em diversas partes do mundo. Em nome da fé, crianças, mulheres, pobres, índios, negros e gays foram e são atropelados pelos donos do poder…

Fogueiras acesas por sumidades religiosas da inquisição mataram muitas e muitas mulheres. Conflitos religiosos que – ao longo dos últimos milênios – levaram milhares de pessoas à morte e fomentaram (ainda fomentam!!!) a intolerância e o ódio. Evoluímos, mas nem tanto… Em pleno século XXI, ainda há lideranças cristãs que defendem o armamento da população e o uso de violência na sociedade.

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O presidente Jair Bolsonaro ganhou mais aliados na defesa da liberação do posse de armas no Brasil: padres católicos. Em seu Twitter, o presidente repostou uma mensagem do Padre Paulo Ricardo, que fala sobre o armamento. “Se é verdade que os cristãos buscam a paz, isso não significa que eles sejam pacifistas”, escreveu o religioso em uma mensagem na qual recomenda que seus seguidores assistam um vídeo sobre ‘o que a Igreja ensina sobre o desarmamento e a legítima defesa’.

O padre Paulo Ricardo parece um desses defensores da ideia de que ‘bandido bom é bandido morto’. Em uma entrevista a um programa televisivo voltado para cristãos, esse religioso foi capaz de criticar o pacifismo e sugerir que crianças devem ser ensinadas a usar armas de fogo e armas brancas. Também sugeriu que covardia é coisa de mulher. Não à toa, há uma foto na Internet onde esse padre aparece ao lado de Olavo de Carvalho e um fã (todos muito bem armados). Veja o vídeo abaixo.

 “Hoje em dia temos um pacifismo maluco. Um pacifismo terrível. Os meninos não podem ter brinquedo que seja arma. Antigamente, a gente brincava com espada. Eu ganhava metralhadora, pistola, fuzil… Brincadeira de menino era brincadeira de guerra”, afirma o padre Paulo Ricardo, criticando aqueles que são contrários a esse pensamento e desqualificando quem defende ser essa uma forma de tornar a sociedade mais violenta.

No mesmo vídeo, o padre segue com pérolas como essa: “Precisa ensinar ao seu filho que ele é um guerreiro do bem [brincando com armas de brinquedo]. Você tira isso dos meninos e você educa mocinhas covardes. Hoje em dia, os meninos não são guerreiros. Não estão aí para proteger a família deles!”. A fantasia de guerra, segundo o padre, precisa estar dentro de uma moralidade, do ‘lado do bem’.

https://www.youtube.com/watch?v=ynl9ojDPz54

As três grandes religiões monoteístas – cristianismo, judaísmo e islamismo – pregam a paz, a tolerância, a compaixão e o amor ao próximo. Ainda assim, muitos de seus representantes parecem mais interessados na intolerância e na violência. Durante a Inquisição, por exemplo, milhares de judeus foram parar na fogueira; outros tantos se converteram em massa à fé cristã, já que o batismo era a única chance de salvação.

A história mostra a força fascista e nazista das correntes religiosas. Em 1215, o 4º Concílio de Latrão proibiu os judeus de exercer funções públicas e os obrigou a usar um distintivo de identificação sobre as roupas – medidas que seriam reeditadas no século 20 por Adolf Hitler e o regime nazista. Cristãos ortodoxos, os sérvios até hoje celebram o ano de 1389 – quando Lazar, chefe das tropas sérvias, morreu enfrentando os muçulmanos e virou mártir. O líder sérvio Slobodan Milosevic invocou esse sacrifício em seus discursos de 1989, acendendo a chama dos confrontos que levariam a uma matança desenfreada.

Judeus matam muçulmanos. Muçulmanos matam judeus. De 200 para cá, já são cerca de 10 mil mortos. Hindus matam muçulmanos. Muçulmanos matam hindus. Do fim da década de 1950 para cá, já são mais de 500 mil mortos. Católicos matam protestantes. Protestantes matam católicos. Nas décadas de 1960 a 1980, foram quase 4 mil mortos. Cristãos matam muçulmanos. Muçulmanos matam cristãos. Foram mais de 100 mil mortos nas décadas de 1980 e 1990.

O discurso do Padre Paulo Ricardo, apoiador do armamento da sociedade e do enfrentamento civil contra a criminalidade legitima a violência e faz crescer o índice de mortalidade de pobres, negros, mulheres, e gays (principais vítimas da intolerância e das desigualdades sociais).  A percepção do padre me faz lembrar – mais uma vez – da morte do leiteiro…

Padre Paulo Ricardo parece preferir o ódio ao amor. Parece achar que bandido bom é bandido morto e parece crer no conceito medíocre de ‘cidadão de bem’. Esse discurso bélico dele me faz lembrar, ainda, o CD ‘Se Deus vier, que venha armado’, do grupo paulista Pavilhão 9, lançado em 1999. Um título tirado do livro ‘Grande Sertão: Veredas’, de Guimarães Rosa, e que acabou virando frase de rap.

A frase de Guimarães Rosa também foi ponto de partida para a produção de um longa-metragem. ‘Se Deus vier, que venha armado’ é o título do filme de estreia do diretor Luis Dantas, lançado em 2015. Premiado no 23º Festival Iberoamericano CineCeará e no FestAruanda 2013, em João Pessoa (PB), o longa tem como pano de fundo a segunda onda de ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) em São Paulo, em 2012, que deixou um saldo de mais de uma centena de policiais mortos. Do outro lado, com o revide da Polícia Militar…

Ver que um líder religioso (de uma religião que – pelo menos no Novo testamento – prega o amor) defende uma sociedade armada e disposta a atirar e matar bandidos me faz pensar que estamos mesmo sofrendo um retrocesso milenar.  Mais que sempre, a violência está legitimada. E com o carimbo divino…

* Jamarrí Nogueira escreve sobre arte e cultura no Jornal da Paraíba aos domingos.