Cultura
1 de setembro de 2021
07:00

‘Qualquer lugar vai ser especial’, diz Flávio José ao pensar em retomada dos shows de forró

Pandemia da Covid-19 atravessou carreira do sanfoneiro paraibano e interrompeu shows e apresentações.

Matéria por Dani Fechine

A pandemia do novo coronavírus deixou em todos algum tipo de saudade. O nordestino perdeu, como todos os brasileiros, vidas que amavam. Parentes, amigos queridos, amores. Mas além da perda pessoal, o nordestino perdeu também o forró. Um ano e seis meses sem arrastar o chinelo no chão de cimento batido, ouvindo o som estalado do triângulo apenas pela televisão e a sanfona sempre chorando a boa saudade. O último show de Flávio José, por exemplo, foi em 4 de janeiro de 2020. E agora não importa onde seja o retorno: “Qualquer lugar depois dessa tragédia toda é especial, porque a saudade é muito grande, a vontade de voltar. Qualquer lugar que a gente for vai ser especial porque vai ser o primeiro depois da pandemia”, declara o sanfoneiro e cantor paraibano. 

De lá para cá, os shows de forró tem se transformado em verdadeiros terreiros de saudade. Lives que substituíram os palcos e o aconchego de um xote. Mas que também exigem custos e cuidados especiais com os protocolos de saúde, afinal, envolve produção, banda e uma série de profissionais para fazer acontecer.

Para quem vive de forró e shows desde a década de 1990, ser abruptamente parado é um choque. Ausência de viagens, shows e público. Apesar da vontade de voltar com tudo ao normal, subir em um palco e puxar o primeiro fole da sanfona, Flávio José é um dos que segue todos os cuidados à risca e teme o retorno. “Eu evito tá saindo, uso duas máscaras, muito álcool… Mas eu ainda não confio. A gente vive em total insegurança”, desabafa.

 Flávio José durante live em abril de 2020. Foto: Reprodução/Youtube 

A preocupação com quem não faz o mesmo também é visível. Com as medidas restritivas cada vez mais flexíveis, Flávio José não vê com otimismo a chegada da normalidade na convivência social.

Já estão abrindo as coisas, já estão relaxando, e as pessoas esquecem que tem uma nova variante (delta) que está complicando e preocupando muito. Então as pessoas estão brincando, tão achando que já podem se aglomerar, que já pode ter show. Não quero ser pessimista, mas gostaria muito que no São João do ano que vem a gente pudesse tocar, mas eu tenho muita dúvida, porque a gente não vê estancar, a gente vê diminuir muito
Flávio José

Cantor dos 300 km

Flávio José completa nesta quarta-feira (1º) 71 anos. São cerca de 34 anos de carreira, desde que começou a cantar e gravar. Tudo começou em 1987, mas o forró já havia entrado na vida do sanfoneiro quando tinha apenas cinco anos de idade e viu Luiz Gonzaga fazendo show em praça pública. Queria seguir os passos do Rei do Baião e pediu aos pais uma sanfona.

 

 Flávio José quando criança, tocando sanfona. Foto: Reprodução/Instagram 

Depois de ganhar o presente, conseguiu tocar a primeira música aos sete anos. Aos dez, já formava um trio de forró pé de serra com mais dois irmãos. Aos treze anos participou de uma orquestra em Sertânia (PE) e, aos 17, formou uma banda de baile que teve muito sucesso.

Mas a vida nem sempre foi regada apenas a forró. Por 23 anos, Flávio José foi bancário, em Monteiro, na mesma instituição. Quando começaram a falar sobre demissões e transferências, percebeu que precisava procurar outra coisa para fazer. Foi quando começou a gravar forró. Em 1990 viu a primeira música “Quando eu olho para você” tocar em muitas rádios. Foi quando as coisas começaram a acontecer. 

Quando o banco quis transferi-lo para o Mato Grosso, Flávio José reavaliou todos os seus direitos, pediu demissão e se aposentou. 

“Sofri muito quando estava na minha carreira dentro do banco, porque eu era chamado do cantor dos 300km, porque não podia sair para muito longe por causa do banco, principalmente no mês de junho, que os shows aconteciam no meio da semana”, conta Flávio José.

A rotina era dura e pesada. Almoçava na cantina do banco e, às 13h, quando terminava o expediente, ia embora com a banda para o próximo show. De madrugada, quando terminava a apresentação, passava no hotel, tomava banho, vestia a roupa de bancário e voltava dormindo na viagem, pronto para assumir novamente o expediente. E assim o ciclo se repetia. “Foi uma luta, mas depois que eu me aposentei, eu comecei a ganhar espaço, viajar pra todo canto que eu quisesse”, revela.

‘Como um acorde de sanfona’

Não dá pra dizer que Flávio José ganhou o mundo levando o forró sem nenhum apoio. Os maiores incentivadores ajudaram sem nem perceber, simplesmente sendo inspiração. Luiz Gonzaga e Trio Nordestino vão na bagagem de Flávio José, além de Dominguinhos, com quem teve grande aproximação e amizade.

“Em termos de ajuda, quando a gente tá começando, eu digo que é ajuda quando a gente chama uma estrela pra cantar com a gente, e ela aceita. Foi o caso de Elba Ramalho, que cantou ‘Dois Rubis’, Dominguinhos, que cantou comigo ‘Gente Sofrida’, e Fagner, que cantou ‘Cartinha pra Seu Luiz’”, lembra Flávio José. 

 Flávio José e Elba Ramalho. Foto: Reprodução/Instagram 

‘Se você grava é sucesso’

A relação de Flávio José com compositores é de longas datas. Maciel Melo, Petrúcio Amorim, Dorgival Dantas, Pinto do Acordeon, Nanado Alves, Gilmar Cavalcanti. Além de músicas compostas por ele mesmo, Flávio José fez sucesso gravando canções de outras pessoas, que acreditam no sucesso da sua voz. “No início da minha carreira eu fiz umas dez músicas, até que um dia um rapaz chegou aqui e disse: rapaz, por que você não grava ‘Que nem vem vem’, de Maciel Melo?’’, conta Flávio José.

Na época, o grande nome da música nordestina e do forró era Assisão, que fazia músicas com melodias mais rápidas. “Eu perguntei, então, se era um forró, e ele disse que era um xote. Eu disse que era muito lento, muito devagar”, conta. Mas Flávio José foi convencido e, das 14 músicas do disco, incluiu “Que nem vem vem”. Maciel Melo ainda presenteou o paraibano com “Caboclo sonhador” e “Terra prometida”. “E eu não era nada besta de colocar as três num disco só. Aí eu soltei cada ano uma”, brinca.

Depois quem entrou nas notas musicais de Flávio José foi Petrúcio Amorim. Quando ofereceram “Tareco e Mariola” para ele gravar, a música se chamava “Meu mugunzá”. No momento, Flávio José não entendeu bem do que se tratava a música e pediu pra ouvir um trecho. “‘Eu não preciso de você, o mundo é grande e o destino me espera…’ Eu disse, não precisa cantar mas não, essa aí eu gravo”, e relembra um dos seus maiores sucessos.

Accioly Neto também marcou a carreira de Flávio José, com grandes canções como “Lembrança de um beijo”, “Espumas ao vento”, “A natureza das coisas”, “Saudade da boa”, “Canção da saudade”, entre tantas outras. “Mesmo assim o pessoal não parou de dizer: “essa música, se você gravar, será sucesso. De repente acontece, e aconteceu na minha vida”, revela Flávio José. 

De todas essas canções, a que mais marca a sua trajetória é a que arrepia, que junta multidões, que une une povo. “‘Que nem vem vem’ foi o primeiro grande sucesso que eu vi a explosão no Parque do Povo”, e assim ficou na memória como a primeira música que ficou na boca do povo. 

O tempo passou e os sucessos continuaram. Flávio José continuou fazendo composições se tornarem grandes músicas para os fãs. “Lápis de cor”, composta por Nanado Alves, de Monteiro, entrou na fila das preferidas de quem tem no forró pé de serra a tradição. Lançada em 2020, ela marca uma nova geração de lançamentos.

A trajetória de Flávio José sempre foi no forró de pé de serra, misturando o xote, xaxado e baião. Se a indústria da música sofreu modificações e foi se inflando de novidades e novos ritmos, ele jamais saiu de moda. Entre indas e vindas de estilos musicais, o forró raiz permanece. Com ou sem pandemia, o nordestino também saberá contar a sua história embalado por um mesmo ritmo. 

“Pra mim não mudou, eu não mudei nada, sou fiel ao que faço, às tradições. Eu nunca fui (para outro lado da música) e nem vou não, vou ficar por aqui mesmo porque é o que eu gosto e me identifico”, declara.