Cultura
17 de fevereiro de 2022
12:10

Centenário da Semana de Arte lembra que nem só de Sudeste viveu o modernismo

Primeiros cem anos de um evento definidor da cultura brasileira são marcados por pesquisadores que se dividem em conflitos regionais e ideológicos. Grupos pedem diferentes formas de revisão.

Matéria por Ana Beatriz Rocha

Posto como marco histórico-cultural do Brasil, o movimento modernista sempre se destacou pela efervescência de obras cujo objetivo era quebrar os paradigmas do que tinha sido produzido até então. A Semana de Arte Moderna de 1922, que tem seu centenário celebrado entre os dias 13 e 17 de fevereiro, foi o estandarte de uma organização cultural que mudaria para sempre o modo de ver e fazer literatura, música e artes visuais no país. Apesar de avassalador, o movimento sempre guardou conflitos, internos e externos, que se estendem até os dias atuais. 

Entre artistas e pesquisadores da área, opiniões se dividem quando o assunto é a Semana de 22, que aconteceu no Theatro Municipal de São Paulo, principalmente em relação a como o evento ressoou em lugares distantes dos grandes centros do Brasil. Acreditando que muito do que se sabe e se ensina do movimento modernista é com base em um olhar específico de acadêmicos e artistas da elite paulista, especialistas defendem um revisionismo do período cultural. 

A discussão ultrapassa até mesmo o evento propriamente dito, e se encaminha para a construção em volta dele. Muito do que foi a Semana de 22 foi repassado ao resto do país nos anos seguintes, mais precisamente em 1924. O que se espalhou foi a ideia de que artistas e acadêmicos de São Paulo tinham proposto romper com “velho”, buscando influências europeias e se afastando de qualquer herança colonial e monárquica, na intenção de mergulhar profundamente na república brasileira. 

Conforme Elaine Cintra, pesquisadora de literatura brasileira e professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o evento foi custeado pela elite cafeeira da época, e por grupos políticos interessados na movimentação. Em sua pesquisa, Elaine se debruça a entender como o movimento modernista ressoou no Nordeste, e se as articulações artísticas presentes aqui são as mesmas que ganharam projeção a partir da reunião de artistas nos salões do Theatro Municipal.

“A necessidade de um revisionismo do primeiro momento das manifestações modernistas em São Paulo, a que se considerou mais tarde como o pontapé desse movimento na literatura brasileira, já está sendo discutida há tempos, mas o fato fica evidente nas chamadas para publicações sobre a Semana da Arte Moderna de 1922, por ocasião de seu centenário”, atesta a professora. 

Famoso retrato dos participantes da Semana de 22. Foto: Reprodução

Elaine explica que, este ano, diferente do que notou em momentos anteriores, existe uma articulação entre os especialistas da área para entender o modernismo a partir de uma perspectiva não apenas plural, mas descentralizada. Ela defende que, antes mesmo de 1922, escritores nordestinos rompiam com o “velho” e recebiam influência de manifestações culturais que se destacavam na Europa. No entanto, o que difere o modernismo feito na parte superior do mapa do Brasil do que era feito pelos grupos do sudeste é o aspecto de regionalismo da arte. 

Em defesa do regionalismo: revisão pede que Nordeste também seja visto como riqueza modernista do país 

A ideia de descentralização defendida pela professora Elaine está relacionada ao entendimento de uma arte produzida em primeira pessoa. Antes de 1922 já havia nesta região artistas modulando expressões narrativas, líricas e dramáticas tomando como base as paisagens e a cultura nordestina. 

Joaquim Cardozo foi um poeta e engenheiro pernambucano, ele fez os cálculos de Brasília e viveu alguns anos na Paraíba, quando registrou nas linhas e nas articulações que estabelecia o amor pelo que era natural do Nordeste. 

“Cardozo aponta para a necessidade de ressignificar aquela época, tirando do esquecimento alguns autores, e reorganizando algumas perspectivas historiográficas, que demandam um olhar revisionista”, destacou Elaine em um de seus trabalhos sobre o poeta. 

A pesquisadora acredita que o contato profundo e assimilador que teve, quando ainda jovem, com a paisagem pernambucana e paraibana o tornou reconhecidamente um dos autores nacionais mais complexos da fase dita moderna. Em 1922, quando os paulistas se organizavam para a semana de arte, Joaquim passou a trabalhar na Baía da Traição, município do Litoral Norte da Paraíba, reconhecido pela forte presença de povos indígenas. 

Elaine explica que a temporada neste local, que, segundo o autor, “possui a mais linda praia do mundo”, foi decisiva para as concepções que o autor e crítico desenvolveu a respeito de suas visão nacional. 

“Conheci, na Baía da Traição, o que era o Brasil daquele tempo; assisti às festas do mês de junho, onde dançavam cocos de roda (só de mulheres) e coco de embolada, dançado por um solista ao som do palmeado e do tambor“, registrou o poeta. Foi nessa temporada que escreveu um de seus poemas de maior destaque, sobre as terras paraibanas. 

Joaquim Cardozo, poeta dos cálculos e defensor do regionalismo. Foto: Correio da Manhã/Arquivo Nacional

 

Recordações de Tramataia Eu vi nascer as luas fictícias Que fazem surgir no espaço a curva das marés Garças brancas voavam sobre os altos mangues De Tramataia. Bandos de jandaias passavam sobre os coqueiros doidos, De Tramataia. E havia um desejo de gente na casa de farinha e nos mocambos vazios De Tramataia. Todavia! Todavia! Eu gostava de olhar as nuvens grandes, brancas e sólidas, Eu tinha o encanto esportivo de nadar e de dormir. [...]”
Joaquim Cardozo

Em 1923 Joaquim Cardozo viajou ao sudeste e viu, de perto, do que se tratava o movimento modernista que se organizava por lá. Trocou inspirações, fez muita pesquisa de campo, consumia muitas coisas do exterior, mas nunca se filiou ao movimento do Sudeste. Conforme Elaine, o poeta nordestino foi contraponto prezando pelo processo de regionalismo, mas essa oposição ao modernismo em voga, segundo a pesquisadora, não era sinônimo de conservadorismo.

Não se trata de um regionalismo caduco, “velho”, contra o novo, o moderno, mas um regionalismo que se inventa e que se faz presente como elemento de renovação, de atualização de uma cena cultural que se apresentava estéril pelo apego às propostas artificiais e não mais representativas de seu tempo."
Elaine Cintra

Joaquim Cardozo teve sua contribuição para a literatura brasileira reconhecida por Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Outro forte nome nacional que prestou reverências ao conterrâneo era o poeta João Cabral de Melo Neto, dono da obra histórica ‘Morte e vida Severina’. Após a morte de Joaquim Cardozo, João Cabral publicou no Correio das Artes, periódico de João Pessoa, em 07 de setembro de 1997, uma nota em que dizia: “Cardozo encontrou o verdadeiro estilo moderno no Brasil, sem ser modernista.”

Trecho do filme ‘Morte e Vida Severina’, baseado na obra do modernista João Cabral de Melo Neto. Foto: Memória Globo

É desse modo que a professora Elaine, juntamente com colegas que buscam fazer uma reavaliação histórica conjunta, acredita que é preciso revisar o modo como se registrou a Semana da Arte Moderna, e, consequentemente, o Modernismo no Brasil, para verificar as várias outras manifestações, que, dentro desse arcabouço, foram tão significativas quanto o movimento em São Paulo, e demonstram que o Brasil deve sempre ser visto em sua diversidade.

Joaquim Cardozo entre outros escritores foram encabeçados pelo antropólogo pernambucano Gilberto Freyre, construtor do ‘Movimento regionalista’ e um dos principais defensores do combate à centralização das articulações artísticas que se davam no Sudeste. 

O modernismo nunca esteve ileso de contradições. Hoje, Freyre é lembrado, também, por aspectos pouco modernistas, como endossar, no tido como revolucionário ‘Casa Grande e Senzala’, que o Brasil vivia uma ‘democracia racial’. Pela obra ele é responsabilizado por incentivar que fosse mantido velado o racismo violento sofrido pela comunidade negra do país. 

Ana Veiga, historiadora e professora da UFPB, explica que essa revisão dos posicionamentos de Gilberto é recente e que muitos escritores leigos da época o tiveram como referência em se tratando de história e antropologia. Quando as informações sobre a Semana de Arte Moderna se espalharam pelo país a abolição da escravatura no Brasil não tinha, sequer, completado 40 anos.

Apesar da reivindicação por uma revisão que reconheça o destaque do Nordeste, a pesquisadora Elaine Cintra não acredita que descentralização seja sinônimo de apagamento dos feitos de grandes nomes do modernismo, como Mário e Oswald de Andrade. 

“A necessidade de repensar o movimento modernista brasileiro não implica em desmerecer as importantes expressões artísticas que ocorreram após 1922, essa primeira geração do modernismo paulista, a chamada “geração heróica” realizou uma obra impressionante. A necessidade é encontrar novas perspectivas, que entendam as manifestações em outras regiões a partir de suas próprias perspectivas”, conclui a pesquisadora nordestina. 

Conflitos e marcos: modernismo progressista e conservador 

“O novo sempre provoca estranheza, e foi assim com a Semana de Arte Moderna, para a grande maioria uma espécie de passatempo de jovens ricos”, é o que conta o poeta paraibano e especialista em literatura brasileira pela UFPB, Sérgio de Castro Pinto. Em suas pesquisas, ele se debruçou a entender a lira de nomes como Manuel Bandeira e Mário Quintana, da primeira e segunda geração, respectivamente.

Sérgio explica que a divisão em gerações se deu pela reunião de conceitos e ideologias de cada momento histórico. A primeira geração, entre 1922 e 1930, foi marcada pelo tom heróico, com o intuito de construir novos fundamentos que se distanciassem do parnasianismo, corrente literária que vem antes. 

As mudanças operadas pelo modernismo, tanto no campo artístico quanto para além da cultura foram gradativas, divulgadas através de manifestos. A segunda fase teve início nos anos 1930, marcada por nomes como Carlos Drummond de Andrade. O período foi até 1945 e a consolidação das ideias modernistas aconteceram nesse meio tempo. 

De acordo com Sérgio de Castro Pinto, a terceira geração, iniciada em 1945, se opunha aos ideais anteriores do modernismo. Com noções mais universalistas que localistas, se distanciou do forte apreço pelas brasilidades defendidas na semana de 22. Dentre as principais diferenças, a terceira geração revitalizou o soneto. 

Quando a semana de 22 despontou no horizonte dos críticos de arte, o Brasil vivia momentos marcantes para além da cultura. O fortalecimento do movimento operário, a disseminação de ideais anarquistas e a formação do Partido Comunista do Brasil precederam o evento, e depois movimentaram a sociedade em paralelo com os avanços e mudanças culturais. Essa ascensão de ideais libertários enfrentou a dureza dos aparatos de contenção do Estado. 

Para a historiadora Rosa Maria Godoy, os primeiros conflitos registrados frente ao modernismo nasceram pelo apego de determinados grupos ao que era produzido até então. “De imediato provocou reações contrárias durante o próprio evento no Teatro Municipal de São Paulo. Houve críticas de setores vinculados a padrões estéticos tradicionais, conservadores”, explica a especialista. 

 Abaporu, quadro de Tarsila Amaral que representa um marco do movimento antropofágico. 

Rosa ainda destaca que é preciso remarcar que o movimento modernista não era homogêneo e se constituiu em várias correntes estéticas: movimento pau-brasil (lançado em 1924 por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, onde o amor pela identidade brasileira era exaltado em forma de uma posição primitivista), movimento verde-amarelo (fundado em 1926, propunha um modernismo de tom nacionalista, sem interferências europeias) e movimento antropofágico (natural da primeira fase, defendiam a ideia de que a cultura europeia deveria ser devorada e digerida por artistas brasileiros), diferentes maneiras de interpretar as ideias modernistas, de se valer delas para repensar o Brasil.

O movimento antropofágico se estendeu à música e trouxe ao Brasil os tropicalistas da década de 1960, com mesclas instrumentais e de estilos que incomodavam quem mantinha o apreço conservado na Bossa Nova, por exemplo. A historiadora Rosa Godoy destaca, ainda, sobre o teor político de todas essas movimentações. Os tropicalistas eram fortes questionadores do regime militar, tendo integrantes sido presos e exilados por conflitos relacionados à censura. 

Para Sérgio de Castro Pinto, a movimentação do modernismo na Paraíba não foi contundente como em outros lugares, e destaca nomes como Peryllo Doliveira, considerado o poeta moderno do estado, e Eudes Barros. Sérgio comentou, ainda, que em 1959 a Paraíba viveu o que seria um ressoar atrasado da geração de 1945. 

Em 1982, quando a Semana de Arte Moderna completava 60 anos, Sérgio decidiu entrevistar vários artistas paraibanos para medir a temperatura do modernismo no estado. O pesquisador relata que os poetas preferiram criticar a ditadura a exaltar o modernismo, para não se posicionar ao lado do movimento que, naquele momento, se confundia com ufanismo. 

Ilustração em homenagem a obra ‘Macunaíma’, uma das mais célebres de Mário de Andrade. Ilustração: Carybé

Questionado sobre referências, Sérgio de Castro Pinto remonta a Mário de Andrade não apenas como um poeta e contista, mas como um orientador de outros artistas, que através de cartas que chegaram a ser publicadas, passava aos outros partes de seu conhecimento. 

Sobre sua lira, o poeta paraibano não nega que bebeu amplamente das águas modernistas provenientes de 1922. “Minhas influências são muitas, incorporei premissas do modernismo na minha poesia, sobretudo a linguagem coloquial”, finaliza. 

Ainda no curso da história, o ‘novo’ do passado pode ser o ‘velho’ de hoje

Nas obras modernistas de destaque no século 20, temas como o colonialismo, a escravidão, opressão indígena e outros tipos de violência não entraram com folga na agenda dos artistas e pensadores brasileiros, e essa é uma das principais problematizações acerca da semana de 22, sob o ponto de vista crítico do século 21. 

Um novo olhar tem sido lançado, por diversos grupos, a trabalhos que um dia retrataram suas histórias sob algum ponto de vista. No modernismo muitas obras refletiam cotidianos de aldeias indígenas, experiências de escritores do Sudeste sobre seus poucos dias na Amazônia. Hoje, indígenas, quilombolas e moradores de periferia produzem, em primeira pessoa, histórias sobre as próprias vivências. 

A decolonialidade é como se chama o caminho de repensar padrões e estruturas construídas há tempos. De acordo com a historiadora e pesquisadora decolonial Ana Veiga, a decolonialidade, mais do que um conceito, é uma prática, hoje associada a uma revisão da história, mas também dos clássicos – sejam eles da literatura, das artes ou da própria historiografia. 

Para a especialista, o conceito pesquisado por sul-americanos mostra que, embora o período colonial tenha terminado, as relações coloniais de dominação se perpetuam e se reatualizam nos mais diversos segmentos da vida cotidiana, como na literatura e na arte em geral. 

É nesse ponto que ela remonta a um antropólogo já citado anteriormente, defensor de um olhar regionalista no modernismo. 

 Maior arte indígena estampada em prédio. Foto: Reprodução/Festival CURA 
Gilberto Freyre é o exemplo máximo na área das ciências humanas, especificamente sua obra ‘Casa Grande e Senzala’, que via com bons olhos as relações entre senhores e escravizados no Brasil. O que a gente vê hoje é o ‘cancelamento’ da obra e do autor por grupos que buscam essa perspectiva decolonial e antirracista, e é certo que a crítica deve ser feita. Porém, antes de qualquer precipitação, uma leitura da obra precisa ser feita, até para que se entenda o motivo de ela ter atravessado décadas do século 20 influenciando a intelectualidade e a academia no Brasil."
Ana Veiga

Além de uma análise mais abrangente sobre o nome que defendia o regionalismo, Ana Veiga traz apontamentos sobre a decolonialidade aplicada ao revisionismo da Semana de Arte Moderna, e seus ares elitistas. 

“A prática decolonial nos faz revisitar esse movimento artístico para colocá-lo em seu tempo e espaço, sem exigir dele um comportamento anacrônico (que está em desacordo com os costumes de uma época), mas reivindicando outros valores e nomes a partir da Semana”, reflete a historiadora. 

É nesse sentido que o poeta Mário de Andrade começa a ser reivindicado recentemente como o integrante negro (embora embranquecido, tal qual o foi Machado de Assis história) da Semana de Arte Moderna.  

“Assim, decolonizar, ou assumir uma postura decolonial, é também se apropriar e contar a própria história, se auto representar na arte, mas também na escrita científica. O “eu” colonizado assumindo um protagonismo, a ponto de revisitar os cânones da nossa história, e a Semana de Arte Moderna está entre eles. Não tem como não ser colocada em discussão em uma perspectiva crítica”, conclui Ana Veiga. 

Entre conflitos regionais e ideológicos, não há como falar em modernismo sem entender que seu primeiro centenário (oficial) é marcado por uma pluralidade de debates acerca não só dos conflitos da épocas, mas das possíveis visões inovadoras a partir da ótica dos artistas e pesquisadores deste tempo.