Cultura
28 de fevereiro de 2022
17:57

Antes da ressaca, a festa: artistas paraibanos falam do papel da boemia e do bar nas artes

Data de 28 de fevereiro marca o Dia Nacional da Ressaca. Mas, em meio ao carnaval, entenda a importância do bar no processo criativo de quem faz arte no estado.

Matéria por Phelipe Caldas

É uma data curiosa. Pouco conhecida. Com origem incerta e não consensual. Fato é que a data de 28 de fevereiro marca no Brasil o Dia Nacional da Ressaca. Que, muito por causa de ser no fim de fevereiro, acontece em meio ou logo depois do carnaval, uma das expressões culturais mais importantes do país. Boemia e ressaca, afinal, caminham juntas, e é sobre esse viés que antecede à ressaca que o Jornal da Paraíba se apega agora.

A ressaca, pois, é antecedida pelas cervejas, pelas lapadas, pelos brindes, pelos excessos. Não raro, portanto, é tratada pelo viés da patologização do consumo. Ao mesmo tempo, não se pode negar, a ressaca é antecedida também pela interação social, pelo diálogo, pelo debate, pela dança, pela democratização da mesa de bar, pela efervescência cultural, musical, literária que muitas vezes extrapolam os limites do boteco.

 A boemia é ambiente de consumo etílico e de muita efervescência cultural 

É o caso, por exemplo, do poeta Linaldo Guedes, de 53 anos, que na década de 1990 participou do “Poecodebar”, um grupo de poesia coletiva que nasceu em João Pessoa e que fez muito sucesso na cidade entre os anos de 1990 e 1993.

A base era o bar
Linaldo Guedes, sobre o Poecodebar

Inspirados e incentivados pelo professor Jomard Muniz, do curso de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba, Linaldo e mais três amigos (Alexandre Palitot, Fábio Albuquerque e Wilton Júnior) começaram o movimento. Idealizado inicialmente na mesa de bar, numa das barracas montadas na antiga Festa das Neves, a poesia se expandiu para outros ambientes boêmios.

No bar, entre doses de cachaça e copos de cerveja, um dos poetas sugeria um tema. A partir daí, um deles escrevia o primeiro verso. Muitas vezes, de forma improvisada mesmo, num pedaço de guardanapo. Passava-se o papel para outro, que escrevia mais um verso, e assim por diante até o fim do poema. Entre conversas, goles, debates que por vezes migravam de uma mesa para outra.

“O grupo tinha uma conotação bem literária. Lançávamos manifestos, fazíamos barulho, declamávamos nossos próprios poemas. Chegamos a ganhar cachê para se apresentar no circuito alternativo de bares de João Pessoa à época”, relembra Linaldo Guedes. “Qualquer boteco servia”, completa ele.

 Linaldo Guedes, poeta 

A poesia nem sempre se encerrava no bar. Esse era um trabalho em constante processo de aprimoramento. “Quando a gente deixava o bar e chegava em casa, íamos aprimorar o poema. Às vezes rasgava, às vezes melhorava, às vezes fazia outros a partir daquele”, destaca.

O ritmo boêmio-literário não passava despercebido, claro. Linaldo lembra, rindo, que por um tempo recebeu o apelido de Zumbi. “Eu passava a noite nos bares e de manhã ia trabalhar. E o pessoal brincava que eu estava parecendo um zumbi. Hoje estou mais recluso, mas eu adorava o bar. O papo, a brincadeira, o debate, a música”.

Ademais, o movimento boêmio surtiu efeito. Serviu de bases para uma sólida carreira literária. Linaldo hoje tem 11 livros publicados entre solos e coletivos e muitas lembranças daqueles tempos. Do grupo, guarda com carinho um poema que leva justo o nome desse:

Poecodebar

bares vomitam poesias
poetas vomitam heresias
e entre horas e horas
vazias
a noite cai
já não importa onde

garrafas vão surgindo
pensamentos vão fluindo
sonhos e malícias
repetidos nas estrelas
enquanto a embriaguez
vai se fazendo poema.

(Alexandre Palitot, Fábio Albuquerque, Linaldo Guedes e Wilton Júnior)

 Linaldo Guedes e Luís Augusto Cassas, poetas e boêmios: o bar como ponto de encontro intelectual 

Acordes boêmios

O compositor e cantor Chico Limeira é outro que propõe um profundo diálogo entre sua arte e a boemia. Chico gosta de bar, elege o Bar do Baiano, nos Bancários, como um de seus principais redutos, e tem muitas de suas músicas que falam desse ambiente etílico.

A maioria das minhas músicas entram na boemia, falam de carinho, de encontro, do consumo de álcool, do carnaval.
Chico Limeira, compositor

Para ele, essa vivência boêmia é fundamental, porque é lá que o compositor aciona uma interação com o outro.

“Eu falaria principalmente em comportamento, em material humano no bar, na vida noturna, no encontro. Quando a gente bebe junto, a gente vai ficando mais verdadeiro, mais genuíno, mais autêntico. Nessa hora a gente consegue recolher muita poesia dos outros, da gente, da atmosfera”, ensina.

 Chico Limeira, compositor e cantor 

Ainda de acordo com Chico Limeira, não foram poucas as vezes que a música nasceu ali:

A vivência é foda
Chico Limeira, sobre sentir as nuances dos ambientes boêmios

Para ele, o importante são os detalhes, os movimentos, a interação. Não raro, ele anota algo num papel, ou grava algo em áudio ou vídeo no próprio celular. Apenas para não perder a ideia, para garantir que o que foi testemunhado bêbado será música depois. “São frases de balcão de bar, de conversa de bêbado, que acaba virando letra de música mais tarde”, comenta. “Músicas que se ambientam na madrugada, nos erros também. O álcool carnavaliza, mas também cobra. Faz seu corpo pedir socorro”, filosofa, justamente ao fazer a fusão entre a boemia e a ressaca que pode vir no dia seguinte.

Ocupando espaços na poesia e no bar

A poeta Cris Estevão gosta do bar, da boemia, da noite. É mais uma escritora que, segundo suas próximas palavras, tem em seus escritos “uma ligação íntima com a boemia”. Em seu primeiro livro, “Morrerá em cada esquina do seu corpo uma pessoa só”, o primeiro dos poemas trata justo sobre o tema.

Em “Tudo o que é mórbido se desmancha no bar”, ela fala de boemia e poesia e declama a sua preferência pela “efemeridade do poema feito no bar”.

 Poema "Tudo o que é mórbido se desmancha no bar", de Cris Estevão 

Ao criticar uma certa masculinidade ainda presente no bar e na poesia, ela diz ser imperativo que as mulheres também ocupem esses espaços:

A gente também pode estar lá. Não precisamos ser aceitas. Podemos pagar nossa conta, podemos ser poetas. É um grito sobre ocupação de espaços
Cris Estevão, poeta e escritora

Cris destaca que sempre escreveu de forma muito espontânea e pondera que a vida boêmia é o ambiente ideal para fazer a ponte com a espontaneidade, fugindo da prisão das regras e dos compromissos. “É um poema desregrado. Ainda que tenha técnicas, é desregrado”, enfatiza.

Nostálgica da velha Feirinha de Tambaú e da velha Lagoa, e apaixonada também pelo Centro Histórico, Cris Estevão explica que produz uma poesia muito ligada ao cotidiano.

“É a ideia da poesia de guardanapo. Que fotografa as situações corriqueiras, que dialoga com o bêbado, com o transeunte, com os personagens da cidade”, explica Cris.

 Cris Estevão, poeta e escritora 

Para além disso, ela não titubeia ao dizer que o bar foi fundamental em sua formação como escritora e poeta. “A gente acaba se encontrando no bar com muitas pessoas que bebiam e bebem dessas expressões artísticas. Tive a sorte de conviver com muita gente boa da poesia, da música, do teatro. E muitos acordos nascem no bar”, comenta, se referindo a saraus, a lançamentos de livros, a eventos culturais que são primeiro pensados na mesa de bar.

Para ela, o bar é parte constituinte de sua arte:

Eu devo ao ambiente bar a minha poesia. Não é um poema bêbado, mas é um poema que ocupa esses espaços do bar
Cris Estevão
 Morrerá em cada esquina do seu corpo uma pessoa só, primeiro livro de Cris Estevão