Espaço Mundo: reduto cultural de João Pessoa vai fechar as portas após treze anos de história

No coração do Centro Histórico, Centro Cultural Espaço Mundo foi um importante local de fomento da cena musical e artística da Paraíba.

Centro Cultural Espaço Mundo, no Centro Histórico de João Pessoa

Era mais um dia de música, festa, animação, cultura pulsando no Centro Histórico de João Pessoa. Bem ali no bairro do Varadouro, onde a cidade nasceu, na esquina da Praça Antenor Navarro, num casarão de primeiro andar, tombado pelo Patrimônio Histórico da Paraíba. Eram os primeiros anos da casa e as apresentações culturais ainda aconteciam num palco improvisado do local. Um bom público estava presente e entre papos, risadas e danças as pessoas ali iriam ser surpreendidas com um momento que poderia ser classificado como histórico.

De uma forma improvisada, sem nenhum planejamento, aproveitando apenas a presença dos artistas na casa e a empolgação repentina dos envolvidos, subiram ao palco de repente o pessoal do Jaguaribe Carne e o músico Chico César. Cantaram e encantaram. Movimentaram o local e fortaleceram a ideia que seria regra da casa ao longo dos anos. Não era apenas um bar, era um ambiente de divulgação, promoção e incentivo da cena musical pessoense. Das bandas e dos artistas independentes. De todos os ritmos que fazem a cidade. Foram centenas de bandas e de músicos da cidade que se apresentam no local. Impossível nominar todos.

O relato acima é baseado nas memórias de Rayan Lins sobre o Centro Cultural Espaço Mundo, fundado em 2009 e que por 13 anos foi um dos mais importantes redutos culturais da capital paraibana. Um ambiente pacífico e acolhedor, que sempre se posicionou politicamente, lutou por pautas caras à cultura do estado, e que depois de todo esse tempo se prepara para fechar as portas ao fim do mês de julho. A data derradeira já está definida. O último domingo de julho, justo no dia 31.

Espaço Mundo: reduto cultural de João Pessoa vai fechar as portas após treze anos de história
Espaço Mundo fica na esquina superior esquerda da Praça Antenor Navarro

Os motivos são de ordem pessoal. Os sócios atuais, Rayan e Luiza Areas, vão em busca de novos projetos. Ela quer investir mais na carreira de chef. Ele deve seguir na área da cultura, mas sem a obrigação diária de abrir o local, manter funcionando toda a estrutura pulsante que fica ao pé da praça.

A decisão é cercada por um sentimento de tristeza óbvio, mas de alívio também:

São 13 anos. É muito tempo. A vida noturna cansa bastante. Não é para todo mundo. Não é uma carreira para se seguir pelo resto da vida. Ainda mais com um conceito nada comercial que a gente sempre teve”, explica Rayan.

De toda forma, ao olhar para trás, o que ficará na posteridade de ambos são momentos como aquele, em que o Jaguaribe Carne, uma das maiores iniciativas musicais da história da cidade, subiu ao palco do Espaço Mundo para dividi-lo com Chico César. Sem nem mesmo terem combinado previamente de fazerem isso. Brindando o público com música da mais alta qualidade.

“Foi uma coisa muito inusitada. Não estava previsto, não foi uma coisa divulgada. Era um outro show, de um outro artista, e de repente eles estavam ali no palco criando esse momento mágico e único”, relembra Rayan.

Espaço Mundo: reduto cultural de João Pessoa vai fechar as portas após treze anos de história
Chico César já se apresentou de surpresa no Espaço Mundo: são histórias como essa que marcam os lugares de uma cidade

O percurso para aquele momento, contudo, não foi completamente aleatório. Rayan relembra que, à época, a Fundação Cultural de João Pessoa (Funjope) funcionava na Praça Antenor Navarro, bem próxima ao Espaço Mundo, quando Chico César foi convidado para dirigir a entidade. “Chico César já era Chico César”, nas palavras de Rayan, um nome com fama nacional e que voltava pela primeira vez a morar na Paraíba. Criou-se um burburinho na cidade sobre a presença dele em João Pessoa, uma curiosidade e um interesse por encontrar o morador famoso, mas pouco a pouco o Espaço Mundo foi sendo adotado como o boteco de Chico César e de sua equipe.

“Todo final de tarde eles estavam lá, tomando uma cachacinha, tomando um caldinho, comendo uma coisinha. Até que chegou o dia da gente ter aquela grande satisfação. Pedro Osmar, Paulo Ró e Chico César. Tudo no mesmo palco”, empolga-se Rayan.

O início como coletivo

O Centro Cultural Espaço Mundo nasceu em abril de 2009. Não era um bar convencional, mas acima de tudo um coletivo, pensado e gerido em conjunto por várias pessoas diferentes, todas ligadas à cultura. Eram tempos de poucos espaços para receber os artistas locais e o ambiente foi aberto com esse objetivo principal. O grupo já tinha realizado anos antes o Festival Mundo, criado também o Coletivo Mundo, e o Centro Cultural seria uma forma de alargar os eventos ao longo de todo o ano, não se resumindo mais a apenas alguns dias (como é típico em festivais).

Desde o início, o local foi o mesmo. O Centro Histórico de João Pessoa, numa perspectiva inclusive política de ocupar aquele espaço da capital paraibana. O casarão na esquina superior esquerda da Praça Antenor Navarro virou sinônimo de efervescência cultural, musical, artística.

Não se resumia à música. O Espaço Mundo se envolveu com as demandas das comunidades do entorno, como o Porto do Capim. Abriu espaço também para outras linguagens. Recebeu, por exemplo, muitas exposições de arte, muitos cursos, oficinas, palestras. “Ajudamos a formar uma geração”, orgulha-se Rayan.

Era um ambiente, acima de tudo, político: “Somos um movimento de esquerda. Sempre fomos um espaço que se posicionou politicamente, no fazer político da cidade”, destaca ele. E, assim, encontros, plenárias, fóruns, reuniões do movimento cultural, tudo acontecia ali.

Espaço Mundo: reduto cultural de João Pessoa vai fechar as portas após treze anos de história
Festival “O Espaço É Delas” em março deste ano: o Espaço Mundo recebeu ao longo de sua história uma série de eventos que dialogavam com o fazer político

Outra iniciativa do Espaço Mundo foi chamar as pessoas da cena cultural paraibana para dialogar, construir juntas o movimento, desconstruir o conceito de concorrência que existia antes entre artistas, produtores, casas. Nasceu assim o Movimento Varadouro Cultural, uma forma de se posicionar juntos. E, juntos, lutar por incentivo, por políticas públicas para o Centro Histórico. “A gente criou esse sentimento de comunidade no local. A gente sempre acreditou que juntando forças poderia avançar mais em alguns pontos importantes”, pontua.

O coletivo seguiu até 2016. Naquele ano, os demais envolvidos rumaram para outros projetos. Rayan, que estava no movimento desde o início, se juntou a Luiza, sua companheira, e passaram a juntos, como sócios, tocar o local. Assim permaneceu, sem que a filosofia do Espaço Mundo fosse modificada por causa disso. Respeitando a postura política, o senso de coletividade que eram marca do ambiente. Na pandemia, por exemplo, foi o primeiro bar a fechar, um dos últimos a reabrir. E, assim, seguiu. E seguirá até 31 de julho, quando o Espaço Mundo cerra suas portas em definitivo.

“É um ciclo que se encerra. Chegou o momento de a gente virar essa página. A gente sai com um sentimento de orgulho e de missão cumprida. A gente mudou realmente a cidade, o cenário musical da cidade. A gente sai com essa sensação de dever cumprido”, orgulha-se Rayan, dizendo-se feliz com as muitas mensagens de carinho que ele e Luiza vêm recebendo desde que foi dada a notícia sobre o fechamento.

Espaço Mundo: reduto cultural de João Pessoa vai fechar as portas após treze anos de história
No início, o palco era improvisado; só depois ele ganhou um espaço próprio

Histórias, muitas histórias

Não se vive em torno de um bar, de um coletivo cultural pulsante, ao longo de 13 anos ininterruptos, sem colecionar muitas histórias incríveis. E, ao conversar com Rayan Lins sobre elas, dá para sentir sua empolgação ao relembrar de muitos desses casos.

“O Espaço Mundo realmente tem muitos momentos marcantes”, resume ele. Afinal, “o coletivo não era uma coisa sem vida. Eram pessoas. Mudando o pensamento em torno do cenário musical local”.

Rayan dá ênfase às amizades criadas em torno do Espaço Mundo, às parcerias firmadas, aos sonhos realizados. Muita ideia aparentemente inalcançável foi proposta e, contra os prognósticos, tornaram-se realidade. Shows de artistas com projeção nacional e internacional, grandes, que toparam tocar no local.

Ele cita bandas como Casca Dura, Dusouto e Devotos. Nomes como o de Siba e de Tiê. Artistas já consagrados, estabelecidos no mercado nacional, que poderiam tocar em qualquer lugar da cidade, mas que, no entanto, escolheram se apresentar no Espaço Mundo.

Dava fila, rodando o Espaço Mundo, gente ficando de fora porque a casa já estava lotada. São momentos muito especiais”, prossegue.

Outro momento inesquecível para a casa foi o show de Biohazard, uma banda de metal clássica dos Estados Unidos que se apresentou no local numa noite de quarta-feira. “Foi uma coisa absurda. Os caras super marrentos, mas a gente superfeliz por estar recebendo eles ali. Juntou uma galera das antigas, que curte um som mais extremo na cidade. Uma galera que nem saía mais de casa e de repente todo mundo se encontrou naquele momento. Foi um momento de celebração”.

Para fazer tudo isso possível, não tinha muito o que fazer. Não era uma questão de improviso, visto que era tudo bem pensado e articulado. Mas de arranjo artesanal para fazer as coisas acontecerem com baixo custo. Os artistas, não raro, ficavam hospedados na própria casa de Rayan, num quarto de hóspede do imóvel. Criando amizades que ficavam para a posteridade. “A gente recebia o pessoal na nossa casa. Eles viravam nossos amigos. Conheciam o nosso cachorro, a minha mãe. Criamos essa relação especial com todo mundo”.

O bar, como já oficializado, fecha no final o mês. Ficarão as histórias, as amizades, tudo o que foi realizado. “São momentos que ficam para sempre na gente”, finaliza ele.

Espaço Mundo: reduto cultural de João Pessoa vai fechar as portas após treze anos de história
Parte da equipe atual do Espaço Mundo; treze anos de história que ficaram na memória dos frequentadores