CULTURA
A descrição do mundo
Finalista do Portugal Telecom, Veronica Stigger faz o leitor se perder na tradução com 'Opisanie Swiata', seu 1° romance.
Publicado em 06/07/2014 às 8:00 | Atualizado em 05/02/2024 às 11:24
O primeiro desafio ao ler Opisanie Swiata é pronunciar o título ('Descrição do Mundo', em polonês — língua do protagonista Opalka, que viaja ao Brasil para visitar um filho desgarrado).
"Acho que todos temos alguma história de mal-entendido por conta da língua", opina Veronica Stigger, que abre o livro com uma carta em que Natanael, filho de Opalka, explica para o pai as medidas que deve tomar para a sua jornada (confira no box).
No trem a caminho do embarque para o Brasil, Opalka conhece Bopp, um viajante que sempre carrega um caderninho a tiracolo. Ambos falam português, mas nenhum dos dois consegue se entender pois conversam em outra língua. "São coisas que podem acontecer em viagens para diferentes culturas", diz a escritora, confessando algumas 'gafes' em outros idiomas para logo mais completar: "Mas ainda não precisei apelar para a mímica. Como Bopp, tenho meus caderninhos."
Um dos finalistas do Prêmio Portugal Telecom deste ano, Opisanie Swiata venceu o Prêmio Machado de Assis, no ano passado. É o primeiro romance depois dos contos de O Trágico e Outras Comédias (2003), Gran Cabaret Demenzial (2007) e Os Anões (2010).
"Não penso o Opisanie Swiata como uma transição do conto ao romance, como se os contos anteriores fossem ensaios para uma narrativa de maior fôlego e, a partir de então, eu só fosse produzir livros cada vez mais longos e mais complexos", reflete a autora gaúcha, que atualmente está trabalhando em dois projetos: o volume Sul (que segundo ela reúne um conto, uma peça de teatro e um poema longo) e Sombrio Ermo Turvo (coletânea de contos que já está no prelo).
O trânsito pelos gêneros é traço tanto da escrita da gaúcha, radicada em São Paulo desde 2001, quanto do próprio romance em questão, que mistura narrativa epistolar, diário, crônica de viagem, entre outros. "Gosto de experimentar com as diferentes formas e não teria por que ser diferente na minha primeira incursão num gênero mais longo", ressalta. "Fui pensando a forma que o livro ia ter enquanto o escrevia. Para mim, não há dissociação entre o texto e a forma que ele terá, o que inclui também a configuração gráfica do volume. Por isso, em todos meus livros, sento com a equipe de design para explicar a concepção do projeto."
Projeto que contou com o esmero da editora, diga-se de passagem. "A Cosac Naiy, das editoras maiores, é a única que está aberta a experimentações como as que proponho", elogia.
"Que outra editora toparia fazer um livro como Os anões, em papel usualmente empregado em livros infantis?" A forma peculiar do romance inclui um adendo bibliográfico que Veronica Stigger batizou de 'Deveres', com os textos que ela pesquisou para compor a história e o registro de conversas informais que teve com amigos.
"Interesso-me por tudo o que me rodeia e, principalmente (antropofagicamente), por tudo o que não é meu", sublinha. "Meus amigos sabem que o que eles me falarem pode acabar num livro. Em Opisanie Swiata, decidi creditar tudo o que foi roubado ou que apenas me serviu de inspiração ou ainda o que foi fonte de pesquisa. E o roubo, a inspiração e a pesquisa se dão antes, durante e, diria, até depois da escrita."
Em 'Deveres', encontramos a poesia modernista de Raul Bopp, modelo para o personagem: "Não me preocupei com a fidedignidade. A maior prova disso é que, no capítulo em que ele aparece, inicio com uma descrição física do personagem que em nada corresponde à de Raul Bopp. O meu Bopp é baixinho, atarracado, de cabelo castanho-escuro e bigodinho".
Para Veronica, a referência serve de aplauso: "Vejo-o como uma homenagem a este grande poeta, de uma personalidade singular, que ainda não foi devidamente valorizado."
Leia aqui um trecho de 'Opisanie Świata'
"(...)A viagem de navio é demorada. É preciso, pois, ter por perto algumas mudas de roupa. O senhor sabe: não se pode viver por mais de uma semana com uma camisa só. Não esqueça também de carregar consigo uma cesta. Compre uns dez limões, um saco de açúcar, um pouco de chá. Eles podem ser úteis no navio. Quando o senhor estiver com ânsias, pegue um limão, eprema-o sobre o açúcar e tome. O senhor pode ainda fazer chá. É só pedir água na cozinha do navio.
Compre também umas duas garrafas de vinho tinto, um pouco de manteiga, pão e queijo. Embora sirvam comida em abundância no navio, é bom estar preparado. Traga também uma faca de cozinha, uma colher e um caneco na cesta, junto com os limões, o açúcar, o chá, o vinho, a manteiga, o pão e o queijo. O senhor poderá levar mais mantimentos se quiser. Há o percurso de trem, antes de chegar ao navio. Talvez seja o caso de dobrar a quantidade de tudo, menos do limão, do açúcar e do chá, que são para o enjoo.
Cuide para que seu baú não suma durante a viagem. Não o perca de vista. E fique de olho também em sua valise. Não deixe que as outras pessoas se apossem de seus mantimentos. Eu sei que a viagem é longa e demorada, mas o pior é chegar até o navio. Depois, é tudo tranquilo. Quando o navio navega calmamente, pode-se subir ao convés. Lá é mais saudável e agradável do que nas cabines. Quando o navio balança, é melhor ficar deitado na cama, porque há casos de passageiros que caem e se quebram ou machucam a cabeça.
Quanto a andar pelas escadas para subir ao convés, deve-se ter muito cuidado, porque há casos de pessoas que descem de fundilhos quando o navio oscila. O senhor não vai querer perder o equilíbrio e descer de fundilhos pelas escadas do navio, não é? Contaram-me que uma senhora machucou-se assim. Ela quebrou uma das pernas e, em três dias, estava morta. Se as camas forem do tipo beliche, jamais se deite nas de baixo. Aqueles que estão nas de cima podem vomitar na sua cabeça.
E preste atenção: durante a viagem, não escute ninguém e não deixe que o perturbem. Não faça caso do que os outros dizem. Diz-se muita besteira na solidão do oceano. Percebo agora o quão tolo posso parecer-lhe ao enfileirar tais recomendações. O senhor é um homem viajado e certamente sabe bem mais que eu da rotina e das exigências de um percurso como esse.
Mo porto daqui, o senhor Jean-Pierre estará lhe esperando. Ele o trará imediatamente até onde estou. Quando o senhor chegar ao hospital, será fácil saber quem eu sou: serei aquele que mais se parece consigo.
Rogo-lhe, pai, venha. Venha tão logo receba esta carta com a passagem. Aguardo-o com impaciência.
Faça uma boa viagem.
Do seu amoroso filho,
Natanael”
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