“A gente tende a procurar literatura de qualidade em outros países, quando ela está sendo feita aqui do lado por gente bastante competente”

"A gente tende a procurar literatura de qualidade em outros países, quando ela está sendo feita aqui do lado por gente bastante competente"

Nesta quinta-feira (19), abro espaço na coluna para texto da mestra em Linguística Luísa Gadelha, que escreve sobre literatura e é editora do site Zona da palavra.

UMA DAS COISAS QUE A LITERATURA NOS DÁ

Luísa Gadelha

Uma das coisas é o primeiro romance da escritora paraibana Débora Gil Pantaleão (em foto de Bruna Dias). Débora é mulher negra, bissexual, vegana, professora, fundadora da Editora Escaleras. Mas esses atributos não estão aqui gratuitamente: num cenário em que o cânone e o mercado literário são comandados majoritariamente por homens brancos, heterossexuais, classe média alta, é incrível e digno de elogios o potencial de uma mulher paraibana ao conduzir uma editora independente que se propõe a dar voz a novos escritores e escritoras, sobretudo escritoras nordestinas.

Obviamente, tais predicados nada dizem sobre a qualidade literária do romance de Gil Pantaleão, que se encontra atualmente em pré-venda. A história tem como pano de fundo as cidades paraibanas de João Pessoa, Baía da Traição e Ibiara – terra dos ancestrais da autora -, e trata de temas como veganismo, raça, classe e gênero, bem como do processo de escritura de um romance: neste sentido, é um romance metalinguístico, um romance dentro de um romance, pois o produto é resultado do trabalho de escola de Betina, uma jovem de 13 anos que se propõe a escrever a história de sua avó.

Mais do que o enredo em si, me chama a atenção a linguagem experimental que Gil Pantaleão maneja com muita habilidade, com sintaxe e pontuação próprias, numa reestruturação da língua portuguesa. Com capítulos intercalados pela mudança de vozes da pré-adolescente e da avó, nos deparamos com divagações de quem devaneia livremente, sem interrupções, com pouca ou nenhuma pausa para tomar fôlego e com seus costumeiros atos falhos.

Expoente da atual literatura brasileira, Gil Pantaleão já possui um histórico de livros de poesia, novelas e contos publicados, mas este é o seu primeiro romance, projeto que requereu uma pesquisa histórica inspirada na vivência da própria mãe da autora. O livro é, ainda, repleto de referências e elementos da cultura paraibana, como artistas, ruas, bares e restaurantes, causando uma sensação de aconchego para os que aqui vivem e, quem sabe, de desejo de descoberta para os que aqui nunca pisaram.

A literatura não tem de ser de origem local para que possa nos tocar: com isso, quero dizer que ela é universal pois, citando o poeta romano Terêncio, “sou humano, nada do que é humano me é estranho”. Contudo, invariavelmente a gente tende a procurar literatura de qualidade em outros países, até mesmo em outros continentes, quando, na verdade, ela está sendo feita aqui do lado por gente bastante competente.

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Luísa Gadelha é graduada em Letras, mestra em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba e doutoranda em Estudos Literários e Feministas pela Universidade do Porto. Servidora da UFPB, também escreve sobre literatura e é editora do site de poesia Zona da palavra. Tem poemas publicados em revistas brasileiras e portuguesas.