“Foi tão bom ver Bixarte ganhar o primeiro lugar. Quem conhece sabe que a excelência não lhe é estranha”

"Foi tão bom ver Bixarte ganhar o primeiro lugar. Quem conhece sabe que a excelência não lhe é estranha"

Não assisti à terceira edição do Festival de Música da Paraíba, mas o cantor e compositor Guga Limeira (em foto de Roan Nascimento) participou, e, nesta quarta-feira (09), abro espaço na coluna para ele contar como foi.

PALCO A PALCO, POUCO A POUCO

Guga Limeira

Neste fim-de-semana que passou, voltamos nossos olhares para a festa em torno do 3o Festival de Música da Paraíba – sim, pois havia festa apesar dos problemáticos conceitos em torno do evento. Martela na minha cabeça se ainda há espaço para esse tipo de competição, especialmente quando é promovida pelo poder público. Martelam na minha cabeça as múltiplas formas de ‘música’ que não são contempladas pelo edital tal como foi posto. E não me conformo com a insistência em inventar uma ideia de ‘música da Paraíba’. A preposição ‘da’, bem ali no meio da expressão, rende outros textões… por isso vou me ater à festa.

É que soa estranho falar em festa em 2020. Mas as artes performáticas, por definição as artes da aglomeração, são o setor mais prejudicado pela pandemia. Na mesma medida em que o combalido e afrouxado isolamento social mostrou que as artes são um ‘serviço essencial’, tivemos de nos confrontar com a beleza triste que foi o processo da Lei Aldir Blanc. O vírus levou o poeta, que antes de morrer mendigou ajuda financeira pela internet. Meses depois de muitas cabeças batendo na parede, a Paraíba recebe recursos COMO NUNCA (FIC, você tá bem? FMC, como vai você?) e que serão investidos exclusivamente na cultura, tudo com o nome bonito do autor de ‘O bêbado e a equilibrista’. Um sinal sem sair do amarelo, conforme eu conversava com Sílvio. Mas olha só: a gente celebra porque a alegria é o exercício da teimosia. E os bichos de palco acontecemos de ser especialistas em teimar. Então fomos teimando, e escrevendo e cantando. E festejando também!

Quando cantei para um teatro quase vazio, me ocorreu a imagem do oceano: aquela massa gigantesca, azul como as poltronas do Paulo Pontes, as ondas belas e indiferentes, à qual recorro quando preciso lembrar do meu tamanho e pôr em perspectiva os meus problemas. O corpo se confronta com o choque da plateia-mar-aberto, e depois de cantar se dirige para receber o choque da camaradagem de quem também estava ali pra cantar – cardume. Quantos éramos no saguão? 20, 25 pessoas? Nossos aplausos renovados a cada retorno de intérpretes desde o palco soaram magros, mas deram a dimensão exata de como o conceito de ‘multidão’ pode flutuar. Eu ouço os seus aplausos, eu me somo a eles e, por trás da máscara, quero rir da competição. Eu já tinha ganhado: num universo reduzido de 14 números musicais, os finalistas desfazem e resolvem e confrontam e renovam < SÓ POR SER E ESTAR > os problemas que eu pessoalmente tenho com aqueles conceitos do 1o parágrafo. A minha geração ali em peso, mesmo depois que o Buarque previu o arrefecer da canção como linguagem, reafirmou a relevância que esta forma de comunicar e de pensar segue tendo. A minha geração também implodiu essa tradição, o que fica evidente na premiação mais-que-merecida de Bixarte e Filosofino. A tradição da boa poesia no Brasil é a da novidade.

"Foi tão bom ver Bixarte ganhar o primeiro lugar. Quem conhece sabe que a excelência não lhe é estranha"

Foi tão bom ver Bixarte (imagem: reprodução) ganhar o primeiro lugar, e tão curioso acompanhar certos comentários sobre sua presença e vitória no festival. Uma parcela de certa esquerda, muito entendida das coisas, crê que Bixarte e Fúria Negra terem levado o prêmio se deu porque elas teriam ‘rompido com gêneros e estereótipos’. Corro o risco de ser ignorante, mas acho que esse raciocínio diminui o espetáculo. Para mim é mais simples: ganharam porque trouxeram o melhor número. O mais bem escrito e o mais bem interpretado, com toda a potência que essas grandes artistas têm e sabem ter. Já que há competição, que pousem os louros na cabeça de quem atingiu a excelência – e quem conhece Bixarte sabe que a excelência não lhe é estranha.

Me deu imenso prazer ver Rhuan Pachêco interpretando ‘Linha’, o forró mais charmoso no festival. Rhuan escreveu com Pedro Indio algumas das canções mais bonitas que já ouvi, e veio ao mundo equipado para produzir xotes fora-da-curva. Cantou e tocou com uma segurança com a qual eu só posso sonhar.

Gostei de ouvir Tom Drummond cantando mais um exemplar do seu repertório elegante, e mais ainda de poder conversar com ele fora do palco. A consciência que ele imprime na sua forma de compor, que já estava lá atrás em ‘Capitu’ e segue em ‘Desenredo’, transborda nos seus comentários sobre o festival.

Uma alegria me deparar com Lucas Gaião. Com ele escrevi uma canção que adoro, e espero fazer outras antes que ele descubra que não precisa mesmo de ninguém para pôr os versos nas suas melodias. Fora do palco nós cantamos Toninho Horta, Edu Lobo e João Bosco, e isso pra mim já é um prêmio.

Pude dizer para Marta Sanchís como a declaração de amor que ela fez à Paraíba em forma de canção me tocou. Marta é uma grande pesquisadora e professora, que vive os movimentos da cultura popular no nosso estado com bastante intensidade. O seu sotaque é uma circunstância: Marta é tão paraibana quanto eu. Lembro dela numa aula de Daniella Gramani em que cantamos ‘Eleanor Rigby’. Posso dizer que esta grande artista transita com naturalidade de Paul McCartney ao Mestre Carboreto, passando pelas ramblas.

Acordei na segunda-feira com uma boa ressaca de dever cumprido. Tendo me inscrito em todas as edições do festival, em última análise me considero privilegiado por ter sido classificado apenas nesta de 2020. Justo ela, com uma pandemia atravessada no meio? É. Fez um pouco de frio a falta do público… mas o calor de ver tanta beleza cometida ali em minha frente parece ter compensado. Brindo a vida de quem está, curvo-me diante daquelas que perdemos, e me alimento por esses encontros que sem a música certamente não ocorreriam. Que venha 2021 com mais som e mais sonho e, quem sabe?, uma vacina. Festa acabada, músico usa pé e o imperativo: vamos pisar forte para verificar a aplicação dos recursos da Lei Aldir Blanc de forma correta, não vamos permitir que parte desse recurso seja devolvido à União, vamos exigir a manutenção do nosso saudoso FIC e do tão aguardado FMC. Vamos?

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Guga Limeira é cantor e compositor.