A CARTA

A CARTA

“Quando o carteiro chegou
E o meu nome gritou
Com uma carta na mão…”

Gilberto Gil me disse, há uns dez anos, que, quando convidou Bono Vox para vir ao Brasil, o fez através de uma carta.

Carta? Como se fazia antigamente? – perguntei.

E ele disse que sim. Enviada pelos Correios. Para o endereço do destinatário.

Bono, um cidadão para além do rock do U2, atendeu ao convite e veio.

Se não estou enganado, Gil era ministro de Lula.

Cartas.

No passado, a gente mandava uma carta e aguardava ansiosamente a resposta.

O carteiro geralmente era o mesmo, já lhe conhecia, sabia seu nome.

Meu pai recebia com frequência dos Estados Unidos. Muitas folhas de papel e somente números (coordenadas) para as observações astronômicas que fazia.

Na virada dos anos 1960 para os 1970, tive alguns amigos com correspondentes na Europa. Na Suécia, na Noruega.

Marcos Leão, figura singular da minha juventude em Jaguaribe, queria saber de línguas, etnias, história – temas que lhe eram muito caros.

Às vezes, trocava letras de músicas. Política não era recomendável.

Mesmo assim, o governo brasileiro violava criminosamente a correspondência.

Eu tinha sete anos na primeira experiência com os Correios. Mandei, totalmente assessorado por minha mãe, um cartão de Natal para Dom José Maria Pires. E ele respondeu.

Repeti na Páscoa. Ele respondeu de novo.

Foi quando tive o desejo de escrever uma carta de verdade, não um mero cartão festivo.

1968, nove anos. Uma noite qualquer. Lembro como se fosse hoje.

O destinatário?

Dom José! Óbvio!

Um menino de nove anos ocupando o arcebispo com suas inquietações infantis.

Carta escrita à mão, com letra de criança.

Ele respondeu. Disse que queria me conhecer melhor. Queria saber mais sobre o que eu pensava do mundo, da vida. E sugeriu que eu o procurasse no Palácio do Bispo.

Naquele tempo, um menino de nove anos andava sozinho pela cidade. Ou meus pais eram permissivos demais.

Lembro que fui de calças curtas e comprei uma revista de Mickey numa banca no centro. O Mistério do Não Sei o Quê era o título da história principal.

Dom José me recebeu em seu gabinete. Tudo muito simples. Tomamos café, conversamos, e ele marcou uma visita à minha casa.

Foi aí que conheceu meu pai. Um pastor cristão de nome José, um ateu de nome Onildo. Tiveram grandes conversas. E também trocaram cartas.

Cartas.

Escrevi poucas.

Recebi poucas.

Em uma delas, levei uma bronca de um amigo professor sobre um projeto editorial que morreu naquele momento.

Em outra, uma garota por quem me apaixonei me lançou mais dúvidas do que certezas sobre o projeto amoroso.

Entre o final da década de 1970 e o início da de 1980, minha avó Stella trocava cartas e cartões com Egberto Gismonti, um dos maiores músicos do Brasil.

As dele vinham de longe. Às vezes, do Japão. Escrevia enquanto excursionava pelo mundo com sua grande música.

Receber uma carta de Egberto era uma alegria que minha avó fazia questão de dividir comigo, pois sabia o quão importante aquilo era para mim.

Agora, quatro décadas depois, mando uma correspondência eletrônica para Egberto, e ele reponde na hora.

O meio ganha em eficiência, mas perde em emoção, numa mística que tinha.

Hoje, só há uma coisa que me faz esperar ansioso pelos Correios: o carro azul e amarelo do Sedex.

*****

A foto (setembro/1983) é de Gustavo Moura.

Da esquerda para a direita: eu, minha mãe, minha avó e Egberto Gismonti.

Estávamos no quintal da casa da minha avó, em Jaguaribe, num lugar que ela chamava poeticamente de Bosque das Lágrimas.