“Hoje eu me sinto como se ter ido fosse necessário para voltar”, Gilberto Gil cantou após o exílio

"Hoje eu me sinto como se ter ido fosse necessário para voltar", Gilberto Gil cantou após o exílio

Continuo minha homenagem pelos 80 anos de Gilberto Gil. O aniversário é neste domingo, 26 de junho.

Os tropicalistas comandavam o programa Divino, Maravilhoso, na TV Tupi, quando, em dezembro de 1968, o governo editou o AI 5, endurecendo o regime. O show que eles faziam na boate Sucata, no Rio de Janeiro, foi usado como pretexto para delatá-los. O resultado: a prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil, seguida de um período de confinação e, por fim, do exílio em Londres. Enquanto estava confinado em Salvador, já em 1969, Gil gravou o samba Aquele Abraço, que seria um dos seus maiores sucessos, e registrou, em voz e violão, as músicas de um disco concluído pelo maestro Rogério Duprat.

Em Londres, descobriu o reggae, conheceu Miles Davis, que o apresentou a Jimi Hendrix, tocou na Ilha de Wight. No disco que gravou em 1971, tomou para si os versos de Can’t Find My Way Home, de Stevie Winwood. No próximo, Expresso 2222, um dos melhores da sua trajetória, levou às últimas consequências a fusão das raízes com as antenas. E voltou às suas fontes nordestinas. A faixa de abertura, com a Banda de Pífanos de Caruaru, remetia à semelhança que identificou entre os sons de Pipoca Moderna e os de Strawberry Fields Forever, dos Beatles. A sua experiência de exilado estava resumida na letra do rock-embolada Back in Bahia. O caminho de volta para casa havia sido encontrado.

Entre 1967 e 1972, lançou cinco discos autorais gravados em estúdio. Louvação (1967) é diferente de Gilberto Gil (1968). O primeiro se identifica com a MPB de meados dos anos 1960. Tem ecos da Bossa Nova, influências da música nordestina, letras de protesto. O segundo (o disco do fardão, como ficou conhecido) é o seu álbum tropicalista. Acompanhado pelos Mutantes, Gil oferece um repertório que traz as ousadias do movimento, mas, no fundo, sua música é a mesma, ainda que Procissão seja despida da feição original para ganhar guitarras elétricas. O disco seguinte, lançado em 1969, quando já havia partido para Londres, tem sons espaciais, cores futuristas, fala de cérebros eletrônicos, da relação do homem com a máquina. Os astronautas americanos haviam pisado na Lua, os cinemas exibiam 2001: Uma Odisseia no Espaço. É como se Gil atualizasse a Lunik 9 de 1967.

No disco de 1971, experimenta o Inglês e ele mesmo toca a guitarra elétrica. Mas predominam as faixas acústicas e a saudade de casa. Já Expresso 2222 incorpora as experiências londrinas. O músico aprimorou o violão, soltou ainda mais a voz. O homem ficou mais místico. Eu preciso aprender a só ser, cantaria um pouco depois, relendo o samba-canção de Marcos Valle. De Louvação a Expresso 2222, temos os fundamentos de tudo o que produziu. Em 1975, quando fui vê-lo de perto pela primeira vez, estava em gestação seu próximo álbum autoral.

O disco Refazenda foi lançado no segundo semestre de 1975. Dominguinhos incorporou-se ao trio que passara por João Pessoa meses antes. As primeiras audições sugeriam que o repertório era menos hermético. Como se o artista buscasse uma linguagem mais popular. As canções soavam assim, mesmo que as letras nem sempre fossem de fácil assimilação. Havia um sotaque nordestino forte, acentuado pela sanfona de Dominguinhos. A faixa Refazenda trazia na letra um sonho que Gil teve na excursão passada. Retiros Espirituais explicitava o seu lado místico. Lamento Sertanejo parecia um blues da caatinga.

O show só passou por João Pessoa no segundo semestre de 1976. Entre o disco e o show, houve a turnê dos Doces Bárbaros, e Gil foi preso em Florianópolis por posse de maconha. Fui à passagem de som, no Teatro Santa Roza, e testemunhei uma longa jam session que me revelou o senso de improvisação de Dominguinhos. Muito além do forró no qual ele era um mestre. À noite, no show, ouvi pela primeira vez Sandra, ainda não gravada, cuja letra, toda construída em cima de nomes de mulheres, fala do período em que Gil ficou numa clínica, após a prisão em Florianópolis.

O ano de 1977 lembra as patrulhas ideológicas. O presidente Ernesto Geisel começava a preparar o Brasil para a redemocratização. A sua distensão era lenta e gradual. O general, que fora secretário na João Pessoa da década de 1930, enfrentou a linha dura dentro das Forças Armadas, tirou torturadores de cena, evitou um novo golpe militar. Falava-se em anistia para os exilados políticos, no fim do AI 5, na reorganização dos diretórios estudantis dentro das universidades. Foi neste contexto que os patrulheiros agiram. Parecia um retorno à época dos festivais. Era preciso ser de esquerda do modo que a esquerda queria. Os tropicalistas não eram.

Refavela é deste período. Surgiu depois da ida de Gil ao festival de arte negra de Lagos, na Nigéria. Antecipava questões cruciais do Brasil urbano, do movimento negro, mas muitos não o entendiam. As patrulhas ideológicas só enxergavam os laços de fita do cabelo de Gil e viam neles um sinal de desengajamento. À exceção da guitarrista Lúcia Turnbull, a banda Refavela era toda negra. Sua sonoridade, também. No meio do show, um número surpreendia (e encantava) a plateia. Por sua força, por sua beleza. Primeiro em Inglês, depois em Português, No Woman No Cry/Não Chore Mais vertia para a nossa língua o reggae cantado pelo jamaicano Bob Marley. Falava dos amigos que foram presos, dos que sumiram, e propunha uma saída otimista: “Tudo vai dar pé”. Seria um dos hinos da anistia, em 1979, e o grande hit de Realce, última parte da trilogia Re.

Realce transformou Gil num astro pop. Mesmo seus fãs mais arejados tiveram dificuldade para assimilar o disco. Até Caetano Veloso estranhou. O artista propunha um salário mínimo de cintilância e cantava: “Quanto mais parafina, melhor”. O tempo mostrou que a rejeição era um equívoco. O disco tem músicas que se incorporaram ao melhor do seu repertório: Super-Homem, a Canção, Rebento, Toda Menina Baiana, Não Chore Mais. As gravações, feitas nos Estados Unidos, são primorosas. E tecnicamente impecáveis. Como em Luar, dois anos mais tarde, que repete as estratégias de Realce. No palco, tanto no primeiro quanto no segundo projeto, Gil trabalha com uma grande estrutura. E reúne muita gente para vê-lo ao vivo.