Consumo, logo existo: reforma tributária e a regressividade fiscal

Advogado comenta aspectos da proposta de reforma tributária.

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Consumo, logo existo: reforma tributária e a regressividade fiscal

Considerada o maior desafio de um sistema tributário justo, a regressividade fiscal passa despercebida no dia a dia da população brasileira. Uma das principais justificativas, talvez, seja a falta de transparência tributária, uma vez que os impostos incidentes sobre bens e serviços, como, por exemplo, o imposto sobre produtos industrializados (IPI), o imposto sobre a circulação de mercadorias (ICMS) e o imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISSQN), repercutem na cadeia produtiva e, sem que os consumidores percebam, são repassados no consumo.

Não à toa, costuma-se dizer que estes impostos acabam anestesiando o cidadão, tornando-o indiferente aos impactos da tributação. Analisando os dados do Tesouro Nacional, percebe-se que a carga tributária bruta do governo geral (governo federal, estados e municípios) alcançou 33,17% do Produto Interno Bruto (PIB), sendo que, deste total, 14,25% decorrem dos impostos incidentes sobre bens e serviços. Em termos proporcionais, a tributação sobre o consumo no Brasil corresponde a 42,96% e se revela como a principal matriz arrecadatória do nosso país, ultrapassando a tributação sobre a renda, lucros e ganhos de capitais, que representa 22,33% da arrecadação.

Nota-se, sem muito esforço, que a matriz tributária adotada pelo Brasil vai de encontro aos modelos praticados nos países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que, em média, possuem 20,5% de impostos específicos sobre bens e serviços e 33,2% sobre rendas, lucros e ganhos de capital. E a escolha da fonte arrecadatória de um Estado, é bom que se diga, repercute diretamente no âmbito social. Isso porque mais e mais pessoas passam a ser tributadas sem análise de signo de riqueza, de modo que o Estado tributa, por exemplo, o dono de um shopping da mesma forma que tributa um informal que trabalha no centro da cidade. Uma tributação cega que, ao invés de progredir juntamente com a capacidade contributiva, acaba regredindo, tributando mais de quem tem menos e menos de quem tem mais. 

E o que a PEC nº 45/2019 e a PEC nº 110/2019 apresentam de positivo nesse cenário? Embora não haja perspectiva de redução da carga tributária sobre bens e serviços com a unificação dos tributos federais (IPI, IOF, PIS, COFINS, CIDE-Combustível e Salário Educação), estaduais (ICMS) e Municipais (ISS), as propostas de emenda à Constituição corroboram instrumentos importantes de concretização da equidade vertical em favor das famílias de baixa renda.

A PEC nº 45/2019, diferente dos modelos vigentes, que utilizam isenções ou alíquotas diferenciadas para bens considerados essenciais, traz, em seu art. 152-A, §9º, um modelo de devolução dos impostos pagos pelo consumidor de baixa renda, no qual o beneficiário receberá um cartão para fins de creditamento mensal dos impostos pagos em suas compras.

Já a PEC nº 110/2019, além de acrescentar no art. 146, da Constituição Federal de 1988, a necessidade de definição dos critérios e da forma em que se processará a devolução de tributos incidentes sobre bens e serviços adquiridos por famílias de baixa renda, traz também a previsão, no art. 155, § 7º, VIII, de concessão de benefícios fiscais (isenção, redução de base de cálculo, crédito presumido, anistia, remissão), mediante lei complementar, para alimentos, medicamentos, transporte público coletivo de passageiros urbanos, saneamento básico e educação infantil. 

Os dois instrumentos citados de combate a regressividade tributária possuem plena harmonia e não há qualquer incompatibilidade entre eles. A distinção reside única e exclusivamente no grau de eficiência. Isso porque a devolução do imposto (crédito fiscal reembolsável) para famílias de baixa renda permite uma melhor identificação das pessoas mais necessitadas, não havendo possibilidade de utilização da restituição por aqueles que possuem renda elevada, além de contribuir para redução da informalidade, uma vez que as famílias serão estimuladas a comprar em estabelecimentos empresariais formalmente integrados ao sistema tributário. 

As previsões normativas merecem elogios e serão de grande valia para as famílias de baixa renda. Entretanto, a matriz arrecadatória do Estado brasileiro, mesmo com essas mudanças, ainda permanecerá incomum e excêntrica, necessitando de uma intervenção mais rigorosa caso almeje um modelo de tributação socialmente justo, com foco, prioritariamente na renda, nos lucros e nos ganhos de capitais, assim como ocorre em diversos países. 

* Yuri Excalibur de Araújo Pereira é diretor fundador do IPF, procurador da Fazenda Nacional com atuação na Coordenação de Estratégia Judicial e especialista em Direito Tributário e MBA em Gestão Tributária.