Conversa de Boteco – Parte 1: ‘Se eu não pagar o ICMS declarado, posso ser preso?’

Em artigo, procurador tira a dúvida se inadimplemento fiscal pode ser tratado como um crime.

ICMS e Antecipação Tributária

Essa foi a pergunta feita por um colega empresário, recentemente, em um bar da cidade de João Pessoa, Paraíba. Respirei fundo e de forma sensata soltei aquele clássico do mundo jurídico: – depende. Seus olhos estremeceram e pude perceber um certo temor no ar. Tentei acalmá-lo e expliquei que o simples inadimplemento fiscal não é objeto de tutela penal; que deixar de pagar ICMS, por si só, não possui relevância penal; que é preciso “algo mais” para que haja uma imputação criminal.

A curiosidade o invadiu e logo veio a segunda pergunta: – E quando é que eu posso responder criminalmente pelo não pagamento do ICMS? Tomei um gole de cerveja, respirei fundo e disse: – Pode parecer brincadeira, mas preciso contar uma história e ela envolve o Poder Judiciário. Você está disposto a ouvir? – Sim, claro, ele disse.

Pois bem. Até 2019, existia grande dúvida no Superior Tribunal de Justiça se o crime previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990, que trata da apropriação indébita de tributo (ICMS, por exemplo), era estritamente relacionado ao substituto tributário (pessoa que, sem possuir relação pessoal e direta com o fato gerador da incidência tributária, é eleita pelo legislador para reter ou recolher o tributo, prática comum nas vendas de cimento, combustível, material elétrico, automóveis e etc) ou se também abrangia o contribuinte direto (aquele que possui relação pessoal e direta com o fato gerador).

Com efeito, diante da divergência interpretativa quanto a quem se dirige a norma penal, nas hipóteses em que o empresário figurava como contribuinte direto do tributo, mesmo que não recolhesse o tributo descontado ou cobrado na venda, nenhuma reprimenda penal lhe era imputada. Não importava se o inadimplemento tributário era pontual ou costumeiro, se decorria de um momento de crise ou de um verdadeiro modus operandi do empresário.

Mas esse quadro mudou no apagar das luzes de 2019. E o “moído” foi grande. Um tal de Robson Schumacher foi denunciado pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina pela prática do crime de apropriação indébita de ICMS, previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137. O juízo de primeiro grau entendeu que o empresário não poderia ser imputado criminalmente pois, conforme já explicamos acima, agiu na qualidade contribuinte e não como substituto tributário, de modo que absolveu sumariamente o réu.

O Ministério Público recorreu da decisão e o Tribunal de Justiça de Santa Catarina deu provimento ao recurso, entendendo que o fato de ser ou não substituto tributário era desimportante para tipificação do art. 2º, II, da Lei nº 8.137. O imbróglio não parou por aí e se arrastou pelo Superior Tribunal de Justiça (Habeas Corpus nº 399.109-SC) e pelo Supremo Tribunal Federal (Recurso Ordinário nº 163.334-SC).

Tanto o Ministro Rogério Schietti Cruz, quanto o Ministro Roberto Barroso concluíram que a interpretação sistemática e teleológica da regra penal apontava para a inexistência de diferenciação entre as espécies de sujeitos passivos tributários (contribuinte ou responsável por substituição), exigindo, a princípio, apenas a cobrança do tributo (ou seja, embutir o custo do tributo no valor da mercadoria ou serviço) seguido da falta de seu recolhimento aos cofres públicos.

Os advogados tributaristas e os criminalistas que estavam presentes tomaram um banho de água fria, uma vez que chegou ao fim a tese da diferenciação entre contribuinte direto e substituto tributário para fins de incidência do crime de apropriação indébita tributaria, constante no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990.

Angustiado, o empresário perguntou: – Então quer dizer que posso ser preso caso não recolha o ICMS declarado e embutido no preço da mercadoria vendida?

– Rapaz, deixe de alvoroço, deixe eu continuar a história, respondi. Eu sei da sua preocupação. Você não está sozinho. O Estado da Paraíba possui um estoque tributário fiscais de R$ 520 milhões e 660 mil (últimos cinco exercícios fiscais), sendo R$ 464 milhões e 138 mil exclusivamente de ICMS.

– Posso continuar, perguntei. Ele respondeu: – Sim, continue.

Então, nem tudo foi desfavorável para os contribuintes. Para a surpresa do Ministério Público Estadual de Santa Catarina e de todos os outros Ministérios Públicos estaduais que acompanhavam atentamente o julgamento do STF no RHC nº 163.334, o Ministro Barroso, de forma totalmente inovadora, promoveu uma interpretação restritiva ao tipo penal da apropriação indébita tributária e passou a exigir um novo elemento objetivo para a configuração do crime contido no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990, qual seja: a demonstração da inadimplência contumaz por parte do devedor tributário.

-Oi? O que é isso?

-Calma! Esse papo vai ficar para o próximo encontro. Até lá!

*Yuri Excalibur de Araújo Pereira é procurador da Fazenda Nacional e membro do Instituto de Pesquisas Fiscais