Economia
7 de junho de 2022
14:53

Engenhos: da rapadura para a desmistificação da dose de cachaça

Primeira reportagem da série mostra como a história da cachaça está envolvida pelo preconceito e, posteriormente, com a ressignificação da bebida.

Matéria por Dani Fechine e Hebert Araújo

Pegue o copo no armário. Coloque uma dose. Pode ser cristal, umburana, envelhecida em barris de carvalho. Agora desfrute do caminho que a cachaça fez, não só na Paraíba, mas em todo o país, até chegar na sua mesa como uma bebida requintada. Nem sempre foi assim. Do estereótipo do bêbado e pobre com uma garrafa de cachaça perambulando pela rua à moda de consumir a bebida em bares e restaurantes. Beber cachaça virou também requinte. Mas até aqui, muita coisa precisou acontecer.

Essa reportagem foi construída em conjunto com a TV Cabo Branco e faz parte da série Engenhos, exibida no JPB2 a partir desta terça-feira (7).

 Professor fala sobre desmistificação da cachaça. Foto: Reprodução/TV Cabo Branco 

A cultura da cachaça no Brasil começa no Nordeste. A cana-de-açúcar se torna uma atividade economicamente viável, fundamental também para a ocupação do território. Com exceção de alguns lugares da região Norte, em praticamente todo o país a cana-de-açúcar é cultivada, bem como seus derivados: açúcar, rapadura e, claro, a cachaça.

O professor e pesquisador da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), José Luciano Albino, explica que o Brasil, enquanto proposta de país, nasce a partir da ocupação da cana-de-açúcar. A Paraíba, mais especificamente, se construiu nessa relação econômica pendular, do Litoral ao Sertão, do Sertão ao Litoral: a cana-de-açúcar na Zona da Mata e a cultura do gado no Sertão. 

Por Litoral, se entende uma área que se prolonga por quilômetros da costa para o interior. As ruínas falam. Contam suas histórias. A voz delas diz que, apesar da beleza, os engenhos da capital não eram os principais. 

 Engenho da Graça, na Paraíba. Foto: Reprodução/TV Cabo Branco 

A historiadora Loyvia Almeida explica que os engenhos da capital tinham uma produção muito pequena e doméstica. Servia como apoio para os engenhos de grande produção que se concentravam na região da várzea do Rio Paraíba. “Esses engenhos, principalmente o Engenho da Graça – localizado em Santa Rita, na Grande João Pessoa – era de pequeno porte, com produção pequena e para abastecimento local”, explica a historiadora. É o que chamavam de Engenhos de Banguê.

A produção, no entanto, não era muito viável. Por se tratar de uma região próxima à praia, o solo muitas vezes não era propício para a cana-de-açúcar. Também não havia fontes de água nas proximidades. Além disso, a região se apresentava como um local mais propício a invasões.

Em toda essa construção histórica, social e também territorial, os engenhos tiveram papel preponderante. O local não era apenas uma área de produção. As relações sociais extrapolavam a produção da cachaça e rapadura. O Brejo paraibano como um todo tem em suas cidades a cultura de engenho como início de uma estrutura mais sólida. Não apenas econômica, a produção de rapadura e cachaça entrou nas veias sociais, nas relações entre famílias e na construção de uma população, na construção do contexto das cidades.

Como lembra Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala, nesse contexto, os engenhos locais seriam o ponto de partida para o próprio Brasil. “As relações familiares, o patriarcalismo, a culinária, a relação com a própria ideia de família, tudo girava em torno da realidade do engenho”, explica o professor José Albino. O engenho, portanto, passa a ser visto tanto como indústria quanto como comércio. 

 Produção de cachaça cresce na Paraíba. Foto: Reprodução/TV Cabo Branco 

Estigma social e escravidão como parte da construção social

No mesmo monólogo das ruínas, as pedras da senzala nunca deixaram de gritar dores ancestrais. Na Paraíba, não houve ocupação pacífica, recebendo, como boa parte do país, um processo de colonização escravocrata, inicialmente com os povos nativos, e depois com a mão de obra africana. Falar em cana-de-açúcar no Brasil é falar de uma relação com a escravidão. A sociedade, por sua vez, vai sendo construída com base em uma relação nociva entre o senhor de engenho e o escravo.

“Enquanto brasileiros, temos muita dificuldade de pensar em cidadania. Nós temos na nossa construção histórica uma dificuldade de ver o outro como igual, porque a nossa formação é desigual”.
Professor José Luciano
 Plantação de cana-de-açúcar na Paraíba. Foto: Reprodução/TV Cabo Branco 

Nesse contexto, a cachaça se apresenta como produção para servir de moeda de troca de escravos. José Luciano relata que os navios saíam do Brasil cheios de barris de cachaça, com destino para a África. O negro era trocado por cachaça, se estabelecendo, portanto, o escambo. Na rota, a cachaça era introduzida na dieta dos escravos como uma alimentação calórica. Portanto, a bebida, em seu início de processo produtivo, era atribuída à “bebida de escravo”. 

Seguindo o caminho da colonização, a cachaça também foi usada para desmobilizar povos indígenas. A situação se explica porque quando os índios consumiam a bebida, muitas vezes se desmobilizavam para os rituais. “Serviu como uma maneira de desarticulação social para ocupação de áreas. É uma bebida extremamente complexa que está em todas as camadas sociais e que agora chega a setores das classes A e B”, explica o professor e pesquisador José Luciano Albino.

Essas explicações vão dando base para o estigma social enfrentado pela cachaça durante muitos anos. À medida que se incrementa o processo de fabricação com boas práticas, inclusive sanitárias, passa-se a associar o produto a uma imagem de “limpeza” e “pureza”. Essa modificação também é acompanhada pelo marketing do produto, que chega junto a um processo de modernização. Palavras como genuíno, puro e limpo são constantemente associadas à cachaça, dando a ela a apresentação de um produto único e especial. “Esse discurso traz um público específico, mais sofisticado, inclusive em relação a outras bebidas. Não é só um discurso. Esse novo momento é um processo de renovação”, ressalta José Luciano. 

 Milton Alves, produtor de rapadura. Foto: Reprodução/TV Cabo Branco 

Tudo começa com a rapadura

Pessoas escravizadas, animais, água. Os motores primitivos que movimentavam as moendas só foram substituídos no Brasil no século XIX por máquinas como as do engenho a vapor. 

A engrenagem do trabalho também mudou com a passagem dos séculos. Mas uma tradição se mantém em certa medida: não são poucos os engenhos que seguem os ramos das árvores genealógicas.

O Engenho de Rapadura Guarim tem cerca de 300 anos. Milton Alves, atual proprietário, conta que o engenho está com eles desde a época do avô, passando de geração em geração. O rosto castigado pelo sol e pelo calor que sai das chaminés de tijolos mostra que o trabalho exige do corpo e das mudanças do tempo. 

No local, bagaceira no pátio, animais de carga, uma espiral de tijolos antigos mantendo firme a chaminé que expulsa vapores perfumados. Seu Milton viu tudo se erguer quando criança. Hoje observa tudo com os olhos azuis. 

Saiu por volta dos dez anos para estudar na cidade de Areia, mas sempre voltava para o engenho. Aos 21 anos, o pai adoeceu, e Milton começou a tomar conta de tudo. “Eu só vivia nos pés de pai, e ele pedia para eu fazer uma produção”, foi assim que aprendeu, pouco a pouco, o trabalho da rapadura.

A produção mudou com o tempo. Antes, a mão de obra era barata e sobrava dinheiro para os produtores. Hoje não resta nada por causa dos custos com pessoal. 

Apesar de ser um negócio antigo, seu Milton só consegue vender o produto porque vai em busca de compradores. Antigamente, o pátio ficava cheio de animais de carga que chegavam para buscar o produto. Hoje, seu Milton não consegue nem fazer reserva na entressafra, porque o dinheiro não dá nem para limpar a cana. 

“O que eu vejo é que o povo de antes consumia mais rapadura. Antigamente se fazia café só com rapadura, para adoçar. Hoje já temos açúcar”.
Milton Alves, produtor de rapadura
 Engenho Guarim, na Paraíba. Foto: Reprodução/TV Cabo Branco 

Ainda assim, há quem encontre na produção de rapadura a fonte de sustento. João Evangelista é funcionário do Engenho Guarim há 20 anos, onde o pai também trabalha e os irmãos já trabalharam como mestre de engenho. 

O trabalho é, de certa forma, perigoso. Exige esforço e cuidado. Há o risco de se queimar com o tacho muito quente. João Evangelista precisa ser rápido para fazer tudo em uma só qualidade. 

Entrou no engenho com oito anos, juntando cana. Hoje cuida e sustenta os filhos com o dinheiro do trabalho com a rapadura. 

Paraíba em destaque e no rumo da modernização

Da rapadura, a cachaça. Da cachaça, a modernização. Da modernização, a valorização do produto.

A partir do anos 1990, os engenhos deixam de apresentar os formatos tradicionais, de uma época colonial, como os da rapadura, e passam a ganhar uma apresentação com base nas novas necessidades: em torno do turismo, dos novos rótulos e até das novas expectativas de marketing, para tornar a bebida mais palatável do ponto de vista simbólico. 

 Processo de desmistificação da cachaça passa por incremento no mercado. Foto: Dani Fechine/Jornal da Paraíba 

“Hoje, sentar no bar e pedir uma determinada cachaça é uma realidade”, diz o professor José Luciano.

Para isso, o setor passou por uma mudança que caminhou por, pelo menos, dois processos: o de reestruturação produtiva, porque os engenhos iniciaram uma modernização industrial, inclusive com alambiques mais sofisticados, e uma ressignificação simbólica.

A cachaça da Paraíba tem se destacado no país inteiro, principalmente a cachaça branca, a tradicional. 

De acordo com o Anuário da Cachaça de 2021, a cidade de Areia, no Brejo paraibano, eleita a Capital Paraibana da Cachaça, que abriga os maiores engenhos locais, aparece como o quarto município do país com mais estabelecimentos produtores de cachaça. Entre 2020 e 2021, a cidade saiu da sétima posição para a quarta.

A cidade de Areia tem, atualmente, nove estabelecimentos produtores de cachaça. O município fica atrás apenas do município de Salinas (MG), com 23 produtores, São Roque do Canaã (ES) e Alto Rio Doce (MG).

O município de Alagoa Nova também faz parte desse ranking, ficando na 12ª posição, duas acima do registrado em 2020.

Em toda a Paraíba são 40 estabelecimentos produtores de cachaça, ficando o estado entre os dez com mais estabelecimentos. Além disso, a Paraíba apresentava em 2021, dados mais atualizados, 197 marcas de cachaça e 162 registros.

Jornalista, mestra em Antropologia e estudante de Direito. Coordena o Núcleo de Dados da Rede Paraíba de Comunicação e integrou a equipe de checagem de fatos das Eleições 2022.
Repórter, especialista em jornalismo cultural pela FIP e mestre em jornalismo pela UFPB. Interessado em aprender e compartilhar conhecimento. Adepto da máxima "Jornalismo é saber ouvir".

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