Só paga imposto quem é de carne e osso (e não tem reforma tributária que mude isso)

Na recém-enviada proposta de reforma do imposto de renda, o Poder Executivo Federal alardeia o fim do que seria um odioso privilégio da elite brasileira: a isenção dos dividendos distribuídos por pessoas jurídicas a seus sócios/acionistas. Nada parece poder afastar a insofismável constatação da injustiça: como é possível um sócio receber, ilimitadamente, milhares, milhões e até bilhões de reais em lucros distribuídos (rectius: dividendos) sem pagar um único real de imposto à Receita Federal?

Os técnicos do órgão sabem, sem dúvida, que esse discurso não resiste à mais superficial das críticas.

Com efeito, como me ensinou o maior especialista em imposto de renda do Brasil, nos bancos da Faculdade de Direito da USP, o prof. Dr. Luís Eduardo Schoueri, é sempre o indivíduo, a pessoa humana, que paga imposto. Assim, o imposto de renda das pessoas jurídicas (IRPJ) nada mais é, em última análise, um imposto de renda específico, que onera um tipo particular de renda, aquela gerada pelos indivíduos através das empresas. A lista poderia seguir indefinidamente: seria cogitável um imposto de renda específico para as rendas oriundas de imóveis, outro para os juros e assim por diante. Em um passado não muito distante, inclusive, eram, no Brasil e no mundo, comuns os chamados impostos de renda cedulares, que tributavam de maneira separada as rendas do indivíduo conforme sua origem e natureza.

Sob essa óptica, se uma pessoa jurídica obtém uma renda anual de 1 milhão de reais e paga, sobre sua renda, aproximadamente 340 mil reais (levando em conta a alíquota geral de 34% do IRPJ), foi o indivíduo que pagou 34% sobre a renda obtida na atividade empresarial. Atualmente, esse lucro, já tributado pelo IRPJ, seria distribuído de maneira “isenta”, livre de tributação (IRPF) ao indivíduo. Vê-se com facilidade que a isenção do dividendo distribuído ao sócio não significa ausência de tributação; representa apenas a opção brasileira dos anos 1990 de concentrar a tributação dos lucros empresariais na esfera da pessoa jurídica.

A grande vantagem dessa técnica tributária é a simplicidade. Com ela, os contribuintes e o Fisco podem direcionar o pagamento de tributos e a atividade fiscalizatória apenas à pessoa jurídica. Além disso, todo o lucro é tributado de imediato, já na sua formação, independentemente da decisão do contribuinte de distribuí-lo aos sócios.

A alternativa proposta pelo Governo é dividir a tributação atual entre IRPJ e IRPF (este, na distribuição do dividendo aos sócios/acionistas), método que se chama de split rate. O grande problema da proposta é que a redução do IRPJ é extremamente tímida, se comparada com o IRPF a ser cobrado sobre os dividendos; em outras palavras, há um substancial aumento na carga tributária aplicável aos lucros empresariais, e não mera divisão do que se arrecada hoje. Além disso, cria-se um grande estímulo à não distribuição de lucros aos sócios/acionistas, o que acaba por prender dentro de pessoas jurídicas, por razões exclusivamente tributárias, recursos que poderiam ter aplicação econômica mais eficiente fora (efeito lock-in). Fomenta-se, ainda, o emprego de inúmeras estratégias para distribuir disfarçadamente os lucros, o que também agrega complexidade ao sistema.

Desconsiderados esses inconvenientes, a grande vantagem da nova fórmula, dizem os teóricos, é que, tributando a renda em duas esferas, as estratégias para reduzir o pagamento de impostos em uma acabam sendo mitigadas na outra, o que tende a assegurar uma tributação mais isonômica entre os diversos contribuintes.

A par dessa breve análise comparativa, que não reflete minimamente a complexidade do tema, nota-se que há boas razões, pelo menos em tese, para optar por um ou outro caminho.

O norte que não se pode perder – para além dos discursos populistas – é que, no fim do dia, é sempre o indivíduo que paga imposto de renda, seja qual forma a cobrança tomar. Assim, os resultados finais agregados devem ser comparados e avaliados criticamente.

Deve a população refletir, por exemplo, se é adequado, como propõe o Governo, tributar a mais de 40% (IRPJ + IRPF) os lucros empresariais oriundos de investimentos produtivos e, ao mesmo tempo, exigir meros 15% dos ganhos obtidos em curto prazo no mercado financeiro.

*André B. Coelho de Miranda Freire é advogado Tributarista e Procurador do Município de João Pessoa. Mestre em Direito Tributário (USP). Diretor Fundador do Instituto de Pesquisas Fiscais.