Cotidiano
10 de outubro de 2021
07:20

Músico paraibano faz canção de denúncia contra tratamento de saúde mental em JP: ‘tenho medo de voltar lá’

Cantor relatou momentos de angústia quando precisou buscar ajuda no Pronto Atendimento de Saúde Mental do Ortotrauma de Mangabeira. Data marcada como o Dia Internacional da Saúde Mental, 10 de outubro carrega a luta contra os estigmas sociais.

Matéria por Ana Beatriz Rocha

“Fora o desgaste mental que é passar por ali (num lugar que é pra acolher) ainda tem o desgaste físico, porque sinceramente só de entrar ali você já é tratado como um inválido”. A fala apreensiva é de Gabriel Reisender, músico e compositor paraibano. O jovem artista escreveu a canção “Rir para não chorar”, onde faz críticas a forma como foi tratado no Pronto Atendimento em Saúde Mental (Pasm) de João Pessoa. 

O Pasm é um serviço da Secretaria de Saúde de João Pessoa, vinculado ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que funciona para atendimentos pontuais, sem acompanhamento duradouro. O local funciona como um anexo do Complexo Hospitalar Tarcísio de Miranda Burity, no bairro de Mangabeira, Zona Sul da capital. 

De acordo com a coordenação, o Pronto Atendimento está aberto 24h por dia, todos os dias da semana. Em média, são 30 atendimentos de urgência e emergência por dia. São disponibilizados apenas leitos de observação, onde os pacientes podem ficar por, no máximo, 72h. Em casos onde seja necessário acompanhamento prolongado, os pacientes são encaminhados a outras unidades inseridas na rede do CAPS. 

Gabriel Reinseden foi um desses 30 pacientes diários por duas vezes. O músico conta que no final de 2019 já estava passando por problemas pessoais e psicológicos que antecederam um diagnóstico de depressão profunda, mas a fase mais complicada veio com a pandemia. O período teria trazido à tona sentimentos de solidão que há muito tempo batiam na porta. 

 

 

 O local funciona como um anexo do Complexo Hospitalar Tarcísio de Miranda Burity, no bairro de Mangabeira, zona sul da capital. Foto: Divulgação/SecomJP 
Já faz um tempo que a minha vida Tá tão doída que nem sinto nada Eu já passei por tanta ideia errada Que nem vou ver se a certa chegar - Canção Rir para não chorar
Gabriel Reisenden

Em setembro de 2020, mês marcado para divulgação de campanhas de prevenção ao suicídio, procurou pela primeira vez o Pasm. Conta que foi lá durante uma madrugada.

“De cara não me senti nada acolhido. Fiquei esperando a psiquiatra me atender. Enquanto isso, ela tava noutra sala conversando. Ela saiu e entrou lá umas 4 vezes, passou por mim sem nem olhar na cara. Depois ela entrou na sala dela, ficou uns minutos abriu a porta e disse ‘Gabriel, pode entrar’. O protocolo foi me fazer umas perguntas básicas e me mandar ir pra casa, indicando uns lugares onde eu poderia fazer terapia e só”, relata. 

Mas foi na segunda experiência no Pasm que o artista diz ter se sentido mais afetado. Ele explica que foi levado pela namorada e por um amigo, que passava uma noite angustiado pelos sintomas de depressão e ansiedade, que esperava, mais uma vez, se sentir acolhido e ter suas dores emocionais atenuadas. Gabriel conta que ao chegar lá alguns acontecimentos problemáticos se enfileiraram.

 

Indignado com a humanidade eu fui internado No Pronto Atendimento de Saúde Mental Nos fundos do Trauminha de Mangabeira Medicamento não fazia efeito Logo pensei isso não tem mais jeito - Rir para não chorar
Gabriel Reisenden

Apesar de medicado e em tratamento, vinha tendo dificuldade de dormir. Ele relata que assim que chegou lá foi sedado, e os profissionais informaram que ele teria que dormir na unidade por causa da sedação. Em seguida, a equipe do plantão alegou que, apesar ser da área da saúde, a namorada dele não poderia ficar para acompanhá-lo, pois mulheres não poderiam dormir no local. Gabriel aponta uma irregularidade na conduta da equipe.

“Eles disseram que minha namorada não podia ficar, mas que uma enfermeira que não estava de plantão poderia ficar por 100 reais. Eu apaguei e acordei no dia seguinte sem ninguém conhecido perto de mim, só tinha essa senhora que tinha ganhado 100 reais para estar ali e eu obviamente fiquei chateado e sem entender nada”, relembra. 

Ao acordar, o músico diz que sua mãe teria ido até a unidade visitá-lo e explicado a situação da acompanhante noturna. Gabriel teria ficado em observação por mais uns dias, mas afirma que o momento de alta também foi traumático.

 

No último dia, a psiquiatra, que nunca tinha falado comigo, estava muito chateada porque alguns amigos tinham ido lá me ver, e no Pasm não existe horário de visitas. Ela pediu inúmeras vezes para eles irem embora e me chamou na sala dela. Disse que eu precisava focar no meu tratamento, arranjar uma causa, reforçou que ela era católica. Eu me senti julgado como alguém que estava passando por tudo aquilo por não acreditar em Deus.”
Gabriel

Por discordar da abordagem da médica, Gabriel teria relatado à profissional sobre a insatisfação e foi expulso do consultório. 

 

Logo depois ela chamou minha mãe, e disse a ela que se eu continuasse pensando do jeito que eu tava pensando, no dia seguinte eu seria transferido pro Juliano Moreira. Aí eles deram um tempo pra minha mãe falar comigo e ela veio chorando até mim pedindo pra eu mudar de ideia, que não queria que eu fosse pro Juliano. Minha mãe perguntou à médica se tinha como me levar pra casa. E a psiquiatra e a assistente social disseram que até podiam me liberar, mas minha mãe tinha que assinar um termo e reforçaram com as seguintes palavras ‘Se ele for pra casa e ele se matar, a culpa é sua.”
Gabriel

O  ‘Juliano Moreira’ mencionado na fala se trata do tradicional Complexo Psiquiátrico da Paraíba, localizado na Avenida Dom Pedro II, em João Pessoa. O local, nos diálogos populares, se tornou referência de tratamentos manicomiais e técnicas de contenção e sedação violentas. No entando, de acordo com o Governo do Estado, unidade gestora responsável pela unidade, o Complexo está inserido há anos na Reforma Psiquiátrica, e não se trata mais de um local assustador como ficou conhecido na cidade.

Era um dia pra eu mudar de ideia Para assumir que a vida é muito bela Como se tudo que eu sentisse fosse besteira - Rir para não chorar
Gabriel Reisenden

O cantor apresentou a música no 4º Festival de Música da Paraíba. Durante a performance, interpretou o modo como ele acredita que tratam pessoas com sofrimentos psíquicos “como loucos e inválidos”.

“Loucura não se prende”

No passado era comum que pacientes com transtornos mentais recebessem tratamentos agressivos. Tratamentos de choque, violência para contenção, amarras, manicômios e outras técnicas foram proibidas a partir da Lei da Reforma Psiquiátrica, em vigor desde 2001. De acordo com a legislação, os pacientes com sofrimentos psíquicos que forem internados devem possuir direitos como: ter sempre um meio de comunicação acessível e estar ciente dos motivos de internação, sedação e outras medidas. A Lei determina, ainda, que o tratamento deve ter como finalidade permanente a reinserção social do paciente em seu meio.

De acordo com a psicóloga Pollyana Calixto, a legislação tinha como foco principal a progressiva desinstitucionalização dos pacientes de transtornos mentais. Teria sido uma resposta a uma luta do Movimento Antimanicomial, que surgiu no Brasil ainda na década de 1970. A psicóloga explica que a proposta era fornecer autonomia aos pacientes, de modo que eles pudessem sair de longas internações e acessar serviços de saúde mental de forma desinstitucionalizada. Com isso, os focos se direcionaram ao fortalecimento de uma Rede de Atenção Psicossocial, que vai desde a atenção básica aos serviços de urgência e emergência.

Segundo Pollyanna, os Centros de Atenção Psicossociais são destinados ao atendimento de pacientes que precisam ser acompanhados. Já locais como o Pasm existem para oferecer atendimento em momentos em que o paciente esteja em crise. É necessário que haja a ação de uma equipe multidisciplinar, que mescle tratamentos medicamentosos e acolhimentos psicológicos através de escutas. 

 O Movimento de Luta Antimanicomial surgiu no Brasil ainda na década de 1970. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil 

Os relatos de Gabriel retratam diálogos inadequados frente à legislação que garante acolhimento. Ameaças e responsabilização da família não fazem parte dos protocolos previstos em lei. Procurada pelo Jornal da Paraíba, a coordenadora do Pasm, Alexina Bezerra, informou desconhecer os acontecimentos. 

Questionada sobre a sedação imediata, ela afirmou que nenhum paciente é medicado sem passar por consulta com psiquiatra. Sobre o pagamento solicitado para que o paciente recebesse acompanhamento durante a noite, a coordenadora disse que não é permitido que os pacientes sejam acompanhados durante a noite, já que visitas não são permitidas, e que não conhece a motivação da equipe para cobrança, já que os serviços do Pasm são públicos e gratuitos. Sobre a denúncia de ameaças à mãe de Gabriel, por parte da psiquiatra, a coordenadora afirma que essa conduta fere as orientações que as equipes recebem e os protocolos de atendimento presentes na legislação.  

Depressão e ansiedade são sofrimentos psíquicos que acometem milhares de brasileiros. De acordo com um estudo realizado pela Universidade de São Paulo (USP) em onze países, o Brasil lidera os casos desses transtornos durante a pandemia. O país atinge a marca de 63% da população com ansiedade e 59% com depressão. A psicóloga Pollyana Calixto afirma que esses pacientes devem ser tratados a partir da integralidade do sujeito.

O profissional que estiver atendendo deve visar conhecer o sujeito, se aproximar dele para entender junto com ele e a família quais os melhores tratamentos. Esses profissionais que trabalham no serviço da Rede devem pensar o tratamento a partir de cada um, com cuidado específico e subjetivo.”
Pollyana Calixto

O olhar de julgamento não é isolado, Gabriel acredita que é um problema social e que ainda existe um preconceito contra pessoas com problemas de saúde mental. Para ele, a inspiração para a canção ‘Rir para não chorar’ surgiu desse acontecimento real.  

“Acredito até que não existe poesia na letra, é puramente um desabafo, uma indignação… Acho que a gente tá muito atrasado no debate sobre saúde mental e suicídio. Tá faltando responsabilidade e profissional de qualidade nas instituições públicas para encabeçar projetos que lidam esses assuntos”, disse o compositor sobre a música. 

A coordenadora do Pasm, Alexina Bezerra, disse, ainda, que ao se sentirem desrespeitados ou com direitos infringidos, os pacientes devem procurar a ouvidoria da Secretaria de Saúde de João Pessoa e relatar os acontecimentos, de modo que os casos possam ser investigados.