Cotidiano
31 de dezembro de 2021
09:08

Sobrevivente de tentativa de feminicídio em 2021 pede saúde para conseguir emprego no próximo ano

Francisca Ediana foi esfaqueada pelo ex-marido após decidir terminar um casamento marcado por agressões. Por estar se recuperando dos ferimentos, perdeu uma oportunidade de emprego.

Matéria por Lua Lacerda

A Paraíba registrou 30 vítimas de feminicídios só de janeiro a 22 de dezembro deste ano, segundo os dados da Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social (SESDS-PB), considerados subnotificados por especialistas. Quanto às tentativas de feminicídio durante esse período, são 26 denúncias oficiais de mulheres que quase tiveram suas vidas arrancadas. Dentro desse número, está Francisca Ediana Pereira, de 52 anos, que mora em Cajazeiras, no Alto Sertão. Ela foi perfurada com vários golpes de faca pelo ex-companheiro em novembro deste ano após decidir terminar um casamento marcado por agressões.

“Não é fácil você lutar com aquela pessoa te furando”

O caso aconteceu na noite do dia 5 de novembro, na zona rural de Cajazeiras, Sertão paraibano. Ao decidir terminar um casamento marcado por agressões morais e físicas, Ediana obteve como resposta do até então marido várias facadas na região do estômago, dentro de sua própria casa. Ele fugiu após feri-la.

Ao JORNAL DA PARAÍBA, Ediana contou que, a princípio, ele parecia aceitar a separação.

Estava concordando com a separação, mas na hora que viu que eu ia sair mesmo, ele veio para fazer o que ele fez”.

Sobrevivente de feminicídio
Francisca Ediana, sobrevivente de feminicídio.
Não é fácil você lutar com aquela pessoa te furando. Foram seis perfurações, fora as minhas mãos, ele me cortou toda. Eu sempre empurrando ele, ele voltando e me furando. Essa sensação é triste, horrorosa, você sente que alguém tá me matando; gritando socorro e ninguém me acudia. Só Jesus estava do meu lado naquele momento".
Francisca Ediana, sobrevivente de tentativa de feminicídio

Ediana foi levada às pressas pelo Samu ao Hospital Regional de Cajazeiras, onde ficou internada por dias e precisou passar por procedimento cirúrgico.

Dias depois, o homem responsável pela tentativa de feminicídio foi encontrado e está preso no momento. Ediane aguarda a justiça para dar sequência no caso.

“O que eu passei eu não desejo para nenhuma mulher”

Ediana espera que o agressor continue preso, mas relatou pouca confiança na justiça: “eu espero que seja feita a justiça, mas você sabe que a justiça da terra não prevalece. Se está no presídio, daqui a pouco está livre, e tudo isso acontece de novo”.

“Estou aqui contando meu testemunho”, disse Ediana. Ela sabe que “não são todas que têm essa sorte, muitas que chegam a morrer, eu passei pelo que passei, mas estou aqui”.

O que eu passei eu não desejo para nenhuma mulher. Foi difícil porque não tem nada pior do que ver uma pessoa querendo te matar como ele fez, simplesmente porque eu queria me separar por conta das bebedeiras dele, das humilhações, dos xingamentos e de várias palavras horrorosas que ele me dizia. Chegou a um ponto que eu disse que não dá mais".
Francisca Ediana, sobrevivente de tentativa de feminicídio

“Vem aquele pensamento achando que ele vai vir de novo”

Um mês após deixar o hospital, ainda se recuperando das perfurações, Ediana diz que está bem, mas “com muito trauma porque não é fácil passar o que passei. Fiz colostomia e ainda tenho que fazer uma nova cirurgia. Estou com uma perfuração aberta e preciso ficar fazendo curativo. ‘Tá’ com um mês que saí do hospital e continua aberta”. 

Além das dores físicas, ela precisa lidar com o trauma emocional. Até hoje, Ediana relata que ainda não consegue dormir direito.

‘Tô’ passando por psicóloga. ‘Tô’ tomando remédio para ansiedade porque não consigo dormir. Vem aquele pensamento direto achando que ele vai vir de novo para fazer algo comigo ou com a minha família. Minhas filhas também ficaram todas desse jeito. Para dormir é na base de remédio".
Francisca Ediana, sobrevivente de tentativa de feminicídio

“Há muito tempo por palavras eu vinha sendo agredida”

“Há muito tempo por palavras eu vinha sendo agredida”, diz Ediana, “eu sou 12 anos mais velha do que ele, ele me chamava de velha, feia, muita palavra que magoava muito”.

Durante os últimos meses em que ela estava desempregada, foi alvo de muito ataques. “Ele sempre me humilhava, dizendo que era para eu comer o que tinha dentro de casa, que não ia trabalhar, que não ia colocar muitas coisas, dizia muita palavra que magoava”.

Com 8 anos de casamento, ele a espancou pela primeira vez. Mas ela conta que as agressões eram sobretudo morais e psicológicas: “falava muita coisa ruim, quando bebia mas quando estava bom também”.

Apesar das agressões, Ediana e sua família contam que ficaram surpresas com o crime:

Jamais esperava dele fazer isso. Na minha família que todo mundo gostava dele, era uma pessoa que a gente tinha aquela confiança de Deus. Nunca deu para achar que ele poderia chegar a esse ponto. É tanto que hoje a gente fica tudo assim: como é que ele teve essa coragem?"
Francisca Ediana, sobrevivente de tentativa de feminicídio

Sonhos para 2022

Ele parou a minha vida“, conta Ediana. Pouco antes de ser vítima do crime, ela estava aguardando ser chamada para um novo emprego: “como eu sofri essa tentativa de homicídio, eles não podem me chamar”. Enquanto se recupera, ela segue sem trabalhar e está morando na casa da filha.

Apesar do trauma, Ediana tem sonhos e planos para 2022. A primeira meta é passar pela última cirurgia e recuperar sua saúde: “tenho fé em Jesus que vai dar tudo certo nessa próxima cirurgia”.

Depois de recuperada, ela pretende voltar a ativa e reconstruir sua vida ao lado da família: “minha força vem de Deus, segundo minha família. Meus netos que me deram força“.

Só o que eu desejo é saúde a partir de agora“, diz Ediana.

Maridos e ex-maridos são responsáveis pela maior parte dos feminicídios no Brasil

Apesar de Ediana se sentir surpreendida pela ação do ex-marido, uma pesquisa da Rede de Observatórios da Segurança aponta que em ao menos 58% dos casos de feminicídios, os criminosos são maridos, namorados ou ex-companheiros da vítima.

A pesquisa analisou 1.823 casos de violência contra a mulher em cinco estados (Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo) e constatou o número de cinco casos diários de assassinatos de mulheres nessas regiões durante 2020. Desse total, foram 449 foram feminicídios. 

A pesquisa mostrou que 41% destas mortes foram provocadas após uma briga ou o fim do relacionamento, ou seja, exatamente como no caso de Ediana, que é uma exceção por ter sobrevivido. 

Ainda de acordo com a pesquisa, houve picos nos números de violência de gênero após o isolamento social devido à pandemia de coronavírus, justamente porque as vítimas estão mais em casa, com o agressor.

O que é feminicídio?

Feminicídio é o assassinato de mulheres pelo simples fato de serem mulheres. Pelas estatísticas, os motivos mais comuns são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre os corpos femininos. 

A Lei nº 13.104/2015 incluiu “feminicídio” como qualificadora ao crime de homicídio, prevista no inciso VI, do Art. 121 do Código Penal, como o homicídio praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Mais adiante no código penal, essa razão é atribuída para quando há violência doméstica e familiar; e menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Diana E. H. Russell, autora norte-americana conhecida como a responsável por cunhar  o termo feminicídio, assim definiu o conceito:

O feminicídio representa o extremo de um continuum de terror anti-feminino e inclui uma ampla variedade de abusos verbais e físicos, tais como estupro, tortura, escravidão sexual (particularmente por prostituição), abuso sexual infantil incestuoso ou extra-familiar, agressões físicas e emocionais, assédio sexual (por telefone, nas ruas, no trabalho e na escola), mutilação genital etc (...) Sempre que estas formas de terrorismo resultam em morte, se transformam em feminicídios".
Diana Russell, escrita e ativista feminista norte-americana

Veja como denunciar

De acordo com o artigo 5º da Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher é caracterizada como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.

O atendimento às vítimas pode ser realizado direto nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (disque 180). Para casos de emergência, a Polícia Militar deverá ser acionada (disque 190). Para denúncias anônimas, busque a Polícia Civil (disque 197). O Centro de Referência da Mulher Ednalva Bezerra, em João Pessoa, que acolhe mulheres vítimas de violência, pode ser acionado pelo número 0800 283 3883.

Feminicídios na Paraíba

Só na Paraíba, no ano passado, 93 mulheres foram assassinadas. Desse número, 36 casos estão sendo investigados como feminicídios. Neste ano, 30 feminicídios foram registrados pela SEDS até  o momento. Abaixo, veja o rosto de algumas das mulheres que foram assassinadas apenas por sua condição de gênero na Paraíba este ano.

 Vítimas de feminicídio em 2021 na Paraíba.