Uma nova catequese indígena acontece em pleno século XXI na PB

Templos se multiplicam nas aldeias da Baía da Traição, Rio Tinto e Marcação e dividem índios entre costumes e religião.

Nas terras indígenas, a presença de templos religiosos chama a atenção de quem visita a localidade. Nas aldeias dos municípios de Baía da Traição, Rio Tinto e Marcação, Litoral Norte, a impressão que se tem é que as igrejas se multiplicam em busca de fiéis. E conseguem. Mesmo em dias de semana os cultos reúnem de 100 a 200 pessoas. Nas terras potiguaras é comum encontrar índios divididos entre os costumes de seu povo e a religião. Muitos abandonaram o toré e a arte de pintar o corpo.O que antes era tido como manifestação cultural de um povo, agora é classificado como ‘coisas do mal’.

A realidade vivida nas aldeias lembra o período de colonização do Brasil, quando os índios foram catequizados pelos padres jesuítas. A situação é tão delicada que um pastor que atuava em uma igreja evangélica de Baía da Traição chegou a ser expulso após fazer pregações atacando os costumes indígenas.

Outro fato que merece destaque é o de uma escola, na qual o diretor, evangélico, vetou a dança do toré. Nem mesmo em comemoração ao Dia do Índio, os alunos, indígenas, podem fazer a dança – muito menos pintar o corpo. O toré é um ritual sagrado dos índios. A pintura no corpo é uma expressão de arte, que guarda em si muitos significados. Eles não dançam por dançar ou pintam o corpo sem motivo. Há toda uma representação por trás disso.

O conflito com o pastor aconteceu há cerca de um ano e meio. Segundo o chefe da Funai de Baía da Traição, Irenildo Cassiano Gomes, a situação veio à tona depois que uma escola convocou os alunos para dançar o toré e as crianças disseram que os pais não permitiam. A partir daí eles descobriram que a resistência vinha do pastor. “Realmente isso aconteceu. O pastor não aprovou o convite da escola. Ele dizia aos fiéis que não via esse costume com ‘bons olhos’ e falou coisas desagradáveis a respeito”, declarou.

Embora faça parte da cultura indígena, nenhum índio é obrigado a dançar o toré ou a pintar o corpo. “O índio é livre para seguir qualquer doutrina religiosa”, frisou. O questionamento foi em relação ao ataque aos costumes indígenas durante os cultos, segundo os moradores da localidade. O pastor teria dito que o toré era ‘coisa do demônio’, o que teria causado a repulsa por parte dos índios evangélicos. O chefe da Funai disse que considera esse fato como algo isolado e que a presença de templos religiosos, de uma forma geral, é positiva.

As terras indígenas potiguaras têm, ao todo, 32 aldeias, sendo 15 em Marcação, 13 em Baía da Traição e 4 em Rio Tinto. Nesses municípios a população conta com igrejas de várias denominações religiosas, dentre elas a Igreja Católica e templos evangélicos, como a Assembleia de Deus, Batista e Madureira.

"Para mim, o toré é coisa do maligno"
Desde que ‘aceitou Jesus’, como costuma frisar, a dona de casa Mislene Ramos proibiu as filhas, indígenas, de dançar o toré e de pintar o corpo durante as festividades realizadas na escola, no município de Baía da Traição. Mislene, que é neta de índio, casada com índio, não esconde a insatisfação com os costumes desse povo. “Para mim, o toré é coisa do maligno. Essa dança invoca forças do mal, as pessoas ficam manifestadas”, declarou.

Frequentadora assídua de uma igreja evangélica (Assembleia de Deus) na aldeia Galego, a dona de casa revelou que foi à escola onde as filhas estudam para informar a direção sobre seu posicionamento. “Cheguei para a diretora e disse que não é para pintar minhas filhas de jeito nenhum. Não concordo com essas coisas. Deus não quer que a gente pinte nosso corpo. Dançar o toré, então, é algo inimaginável”, frisou. 

O discurso inflamado da dona de casa não é o único. A comerciante Edvânia Galdino, mãe de três crianças indígenas, também não concorda com as tradições. Ela disse que mudou de opinião depois que se converteu e passou a frequentar os cultos evangélicos. “Um dia meu filho do meio inventou de pintar o corpo em casa e ensaiar o toré. Eu disse a ele que isso não agradava a Deus. Ele não vai deixar de ser índio por isso”, frisou. Apesar do posicionamento, Edvânia disse que não critica os índios que dançam o toré. “Cada um faz o que quer de sua vida. Até acho o toré bonito, mas sei que não posso servir a dois senhores”, argumentou. 

Uma nova catequese indígena acontece em pleno século XXI na PB

Dona de casa Mislene Ramos diz que considera dança como algo que "invoca forças do mal". (Foto: Francisco França)

O pastor José Carlos de Lima, presidente da Secretaria de Missões da Assembleia de Deus na Paraíba (Semad), disse que a igreja nunca proibiu a dança do toré ou a pintura do corpo aos índios evangélicos. Segundo ele, não há nenhuma orientação nesse sentido. “A gente não proíbe de jeito nenhum. Cada pessoa é livre para fazer o que quiser, todos têm o direito de ir e vir. Eu, como presidente da Assembleia de Deus, asseguro que isso nunca aconteceu”, afirmou. 

Ainda de acordo com o pastor, a arte de pintar o corpo ou mesmo de dançar o toré, como é costume entre os indígenas, devem ser vistos como a opção de cada um. “A maior autoridade é a palavra de Deus. Quem quiser pode pintar o corpo, pode dançar o que quiser, não vamos proibir”, declarou. Em seguida, o pastor disse que “quem quiser mudar de vida tem que seguir a palavra de Deus". 

Ataque aos costumes é negativo
Os reflexos da intolerância estão por toda parte. Em uma das escolas indígenas de Baía da Traição a reportagem conversou com uma menina de 8 anos. Os cabelos negros e lisos e os lábios avantajados são traços que logo denunciam sua descendência. Na sala de aula, ela disse que se vê diferente dos colegas. Não por ser indígena, mas porque não pode fazer o mesmo que algumas crianças fazem: pintar o corpo segundo a tradição indígena. A vontade dela esbarra no pensamento dos seus pais, que depois que passaram a frequentar uma igreja evangélica local proibiram a filha de fazer a pintura.

Uma nova catequese indígena acontece em pleno século XXI na PB

Índios afirmam que discriminação é uma realidade na rotina deles. (Foto: Francisco França)

A menina não entende a real problemática que há por trás desse pensamento. Os pais, possivelmente, também não compreendem que ao impedir a filha de pintar o corpo, estão negando sua própria identidade. Embora o cenário e os personagens sejam outros, a história parece ser a mesma vista durante a colonização do Brasil, quando houve a catequização dos índios.

De acordo com Nelimei Galdino, diretora da Escola Municipal Antônio Azevedo, o ataque aos costumes indígenas é muito negativo, principalmente quando os educadores unem esforço para revitalizar a língua tupi-guarani nas escolas. “Infelizmente é um problema real que temos. Não são todos os alunos, mas temos casos de crianças e adolescentes que são impedidos pelas famílias de dançar o toré e também de fazer as pinturas no corpo. Isso nos deixa triste demais”, afirmou. A reportagem tentou contato com a Secretaria de Educação de Baía da Traição, mas não obteve êxito.