Não é ‘frescura’: ligar depressão apenas a traumas dificulta identificação de casos

Muitos, erroneamente, também ligam a doença à falta de fé.

Não é 'frescura': ligar depressão apenas a traumas dificulta identificação de casos
Ana lidava com o perfeccionismo como se fosse  um defeito saudável e produtivo (Foto: Douglas de Oliveira)

A ausência de razões determinantes e diretas para os transtornos mentais desafia a compreensão sobre si e sobre o outro. Nesse ponto, no caso da depressão, alguns ‘erros’ de avaliação dificultam a identificação de casos. Como por exemplo, a associação do transtorno a grandes traumas. Esse é o tema da segunda reportagem da série de reportagens ‘As Faces do Vazio’.

(Esse texto faz parte da série ‘As Faces do Vazio’, produzida por Douglas de Oliveira originalmente como trabalho de conclusão no curso de Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba.)

No livro Mentes Depressivas, a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa admite humildemente as limitações do conhecimento científico e sua pequenez diante de tudo o que existe, de tudo o que não foi descoberto. Ainda acrescenta: “se estivermos imbuídos do combustível poderoso do amor ao próximo (altruísmo), esse conhecimento quase insignificante será capaz de grandes efeitos terapêuticos, mesmo que tais efeitos não possam ser cientificamente considerados verdades absolutas […] talvez, em um futuro não tão distante, venhamos a descobrir que cada ser possui um funcionamento único e peculiar e, como tal, requer um tratamento individualizado que seja capaz de harmonizar suas verdades bioquímicas, genéticas, psicológicas e ambientais”.

Ana Beatriz elenca possíveis motivações responsáveis por empurrar uma pessoa no processo depressivo, que, segundo ela, provoca efeitos mentais, físicos e espirituais. Entretanto, deixa claro: cada ser humano é único e complexo, assim como seus conflitos.

Fernando Pessoa já dizia que a alma dos outros é um universo ao qual não temos acesso. Nada sabemos da alma senão da nossa, as dos outros são olhares, gestos, palavras. Ana não gosta de medir a dor do outro. Afinal, quem é ela para isso? É coerente dizer ao outro que não há motivo para ele chorar, estar triste, sentir medo, não querer viver? Não sabemos qual a dor do outro, nem temos a capacidade de quantificá-la e estabelecer um patamar para a depressão.

Diferentes fatores podem causar depressão

Plurais, indefinidos. Assim são os alvos e os fatores da depressão. Ela pode ancorar qualquer um, por qualquer razão. Luto. Violência. Falência financeira. Bullying. Abuso sexual. Assalto. Câncer. Não só esses motivos levam ao transtorno. Dizer que sim é renunciar a compreender o testemunho vivo de Ana, 28, e de tantos outros que carregam o estigma de ‘não terem razões’ para sentirem a dor que sentem.

Embora alguns parentes de Ana já tivessem passado por processos depressivos, a carga genética isoladamente não seria o bastante para despertar nela o transtorno. Outros acontecimentos precisaram se desenrolar no fim da adolescência da turismóloga. E acontecimentos não são apenas externos a nós mesmos; eles também se sucedem em nossa mente.

Medo de perder o controle

Ana lidava com o perfeccionismo como se fosse um traço da personalidade, um defeito saudável e produtivo. Angustiava-se quando a situação fugia ao seu controle. Assim aconteceu no período dos estudos para o vestibular. Estudante de escola pública, ao entrar em um cursinho preparatório privado, a jovem sentiu-se bombardeada por fórmulas e conceitos que só vira superficialmente nas aulas do ensino médio.

Às vezes, organizava sobre a cama os papeis com conteúdos e exercícios e se perguntava por onde começar. Diante da cobrança excessiva, do receio intimidador de errar, ela paralisava: “Eu queria fazer tudo muito bem feito e acabava sem fazer nada”.

Esses não foram os piores momentos. Em 2012, aos 22 anos, já cursando Turismo na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e trabalhando, a crise invadiu a rotina de Ana. A família percebeu mudanças no seu comportamento e procurou ajuda psiquiátrica para a sobrinha.

Conciliar as exigências dos estudos e do trabalho com as suas “cobranças paralisantes” parecia uma missão impossível. Os momentos de agonia começaram a preencher grande parte das 24 horas diárias da jovem. À necessidade de “fazer tudo ao mesmo tempo”, o organismo respondia com madrugadas de angústia e insônia.

Não é 'frescura': ligar depressão apenas a traumas dificulta identificação de casos
Ana disfarçava os sinais de depressão para colegas de curso e de trabalho, sorria diante da multidão (Foto: Douglas de Oliveira)

Cobrança e sentimento de culpa

“Se meu chefe me cobrasse por uma coisa, eu estava me cobrando cem vezes mais. Por eu me cobrar muito, eu errava muito mais. E com isso, eu vivia com um sentimento de culpa muito forte”, disse Ana. Ela disfarçava os sinais de depressão para colegas de curso e de trabalho, sorria diante da multidão: “Eu tomava medicamento e eles nem sabiam”.

Só confidenciava seus sentimentos a familiares e amigos próximos, ao terapeuta e ao psiquiatra. Talvez um dos seus professores tenha chegado perto de descobrir o transtorno quando os sinais começaram a surgir nas provas. O desempenho acadêmico de Ana baixou. Mas a estudante negou que algo acontecia. Afinal, já estava em tratamento, não gostava de exposições e contar iria demonstrar suas fraquezas, pensava ela.

O tratamento continuava como se fosse perpétuo. E Ana queria resultados rápidos. Não aceitava o provável diagnóstico nem que deveria descansar mais. Abandonou a terapia em 2014 e só retornou em 2016, quando vivenciava as tensões no desenvolvimento do seu Trabalho de Conclusão de Curso.

Diagnóstico de depressão bipolar

Em 2017, ao perguntar à psiquiatra se havia um diagnóstico fechado, descobriu que provavelmente sofria de transtorno afetivo bipolar ou depressão bipolar. Ana não conseguia parar. Não conseguia dormir por julgar estar perdendo tempo. Isso colocava sua saúde em risco. Eram efeitos do transtorno afetivo bipolar.

Há um ano, Ana se considera em uma zona de equilíbrio. Mesmo assim, continua frequentando a terapia. Durante as sessões, conheceu-se melhor e aprendeu a lidar com as frustrações do erro. Percebeu que desvios no planejamento também a constituem e rendem boas experiências. Um exemplo disso é o seu curso. Inicialmente, queria cursar Ciências Biológicas. Acabou se encontrando com Turismo, como se fosse obra do acaso. Surpreendeu-se com o imprevisível. Para melhor.

Junto com a psicóloga, ela descobriu que não foi uma escolha aleatória. “Tem muito a ver com a minha personalidade. Trocas culturais, compartilhamento, tudo isso… Vai muito além do viajar, eu gosto muito de estudar a transculturalidade”, diz Ana, empolgada com a descoberta que fizera há pouco tempo e com o amadurecimento gerado por adentrar num território tão próximo e, por vezes, desconhecido: seu próprio ser.

“Como eu passei a me conhecer bem, a perguntar a psicólogos e psiquiatras sobre os sintomas, a procurar ter um olhar diferente, então eu já sei quando tá mais pra um polo ou mais pra outro. Eu consigo identificar pra manter o equilíbrio. Hoje em dia, eu aprendo muito mais com meus erros de uma forma construtiva, evolutiva e não paralisante como era antes”, reflete Ana, satisfeita por estar resgatando aos poucos aquilo que a depressão havia roubado dela.

Depressão não é falta de Deus

Uma das razões mais frequentes atribuídas à depressão é a popular “falta de Deus”, como se o transtorno mental se apossasse do corpo da pessoa em decorrência de um pecado ou como se ele próprio fosse um pecado. É comum ouvirmos estas acusações: “Com essa tristeza, você demonstra sua ingratidão a Deus” ou “Você está assim porque não ora o suficiente”.

Considerar os aspectos espirituais de maneira tão equivocada dificulta o tratamento efetivo da depressão e piora ainda mais os quadros, pois essas acusações contribuem com o aprofundamento de um sentimento de culpa na pessoa que apresenta os sinais do transtorno.

O fato é que não há uma determinação de que a depressão se ligue à falta de fé ou de religião. Se fosse diferente, católicos (até mesmo padres famosos, como Marcelo Rossi), protestantes, budistas, muçulmanos ou pessoas espiritualizadas sem religião não desenvolveriam esse processo de adoecimento. E não é justo dizer que elas desenvolveram porque estavam “fracas na fé”.

Espiritualidade como escolha

Os motivos que levam à depressão são vários, ligam-se ao funcionamento orgânico e psíquico do corpo, não estando submetidos a forças demoníacas ou pecados. A não ser que a pessoa creia nessa associação e se abata profundamente pelas falhas espirituais que comete.

Embora uma coisa não implique diretamente na outra, os médicos já reconhecem o papel da espiritualidade no tratamento da depressão. Entretanto, Antônio Gomes, doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, afirma em um artigo que “a religiosidade extrinsecamente motivada pode estar associada a um risco maior de sintomas depressivos”.

A espiritualidade deve ser, portanto, uma escolha e não uma imposição. Além disso, não se deve achar que ela, por si mesma, garantirá a recuperação. É preciso investir em uma interação com o tratamento psicoterápico e medicamentoso, seguindo assim as orientações da psiquiatra Ana Beatriz Barbosa, no livro ‘Mentes Depressivas’: “não se trata de prescrever oração como se fosse remédio, mas, partindo de uma vontade ou do interesse do paciente, procurar uma forma de usar a espiritualidade a seu favor”.

* Com edição de Jhonathan Oliveira

* A série ‘As faces do vazio’ é originária da grande reportagem ‘Entre semblantes, sentimentos e sentidos: a (des)construção discursiva da depressão sob a ótica do jornalismo’ apresentada como Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo do acadêmico Douglas Oliveira, sob orientação de Carlos Azevedo.