Suspeitas na Transposição: empresa com contrato de R$ 62 milhões pertenceria a vendedora de calçados

CGU identificou risco de superfaturamento de R$ 11,8 milhões no negócio

Segurança Hídrica na Paraíba – Foto: Ascom/MDR

A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) firmou um contrato de R$ 61,7 milhões para a compra de tratores com uma empresa fundada há apenas dois anos: a Imperiogn Comércio de Máquinas Equipamentos e Serviços, registrada em nome de Ana Luiza Cassiano Batista, de 21 anos. A Controladoria-geral da União (CGU) identificou risco de superfaturamento de R$ 11,8 milhões no negócio firmado pela estatal.

O GLOBO identificou um perfil do LinkedIn em que Ana Luiza se apresenta como vendedora de calçados numa loja da capital goiana. Procurada, a mãe de Ana Luiza, Andrea Cassiano Batista, afirmou que a filha não tem empresa registrada em seu nome e que ela trabalha como diarista em Goiânia.

— Ela não tem empresa. Ela é diarista, não tem nem carteira assinada — resumiu Andrea.

O GLOBO também entrou em contato com a própria Ana Luiza. Ela pediu que os questionamentos fossem feitos a Vanderson de Souza, apresentado como gerente comercial e único funcionário da empresa. De acordo com Souza, Ana Luiza é dona da Imperiogn.

Apesar de pouco tempo de existência, a Imperiogn já participou de 49 licitações do governo federal e firmou contratos com diferentes braços do poder público, entre eles os ministérios da Defesa, Saúde, Educação e do Desenvolvimento Regional, ao qual a Codevasf é vinculada. Ao todo, a empresa já recebeu R$ 6,9 milhões do erário.

Contatada pela reportagem, a Codevasf negou que haja irregularidades no negócio. A estatal afirmou que ainda não fez pagamentos à empresa, mas informou que já empenhou (reservou para pagamento) R$ 13,7 milhões.

A Controladoria-geral da União identificou riscos de superfaturamento no contrato, assinado em março deste ano para o fornecimento de 325 tratores. De acordo com a CGU, os valores usados pela Codevasf como referência para a aquisição dos veículos foram “exorbitantes” em relação ao Painel de Preços do governo. O preço estipulado pela Imperiogn é de R$ 190 mil por trator, embora a própria Codevasf comprasse o mesmo tipo de equipamento por valores que variavam de R$ 93 mil a R$ 115 mil na época da licitação, aponta a CGU.

“Constata-se que a Codevasf optou por desconsiderar as informações de cerca de 20 registros de preços consolidados no painel, o que majorou significativamente o valor unitário estimado para o processo de aquisição de tratores agrícolas”, diz a CGU.

Questionado sobre o conteúdo do relatório elaborado pela CGU, Vanderson de Souza, o gerente comercial da Imperiogn, disse que o preço está abaixo do valor de mercado. Ele alegou ainda que a empresa teria dificuldade de fornecer os tratores pelos valores previstos no contrato assinado com a Codevasf, devido à inflação.

Retroescavadeiras

A CGU também identificou riscos de sobrepreço em outra contratação feita pela Codevasf, mas para a aquisição de 175 retroescavadeiras por R$ 62 milhões. Este contrato foi vencido pela empresa chinesa XCMG, com uma proposta cujas características também despertaram a atenção dos técnicos da Controladoria-geral da União.

A estatal aceitou pagar R$ 354,9 mil por cada veículo. A CGU realizou uma pesquisa de preços e verificou que o preço unitário poderia ter sido de R$ 309 mil. Segundo a CGU, foram desconsiderados valores de referência mais baratos no Painel de Preços sem justificativa técnica. A XCMG foi procurada, mas não respondeu ao contato do GLOBO.

Em resposta ao GLOBO, a Codevasf disse que os projetos da companhia “servem ao interesse social e são empreendidos com abordagem técnica, independentemente da origem dos recursos orçamentários. A aquisição de bens envolve análises de adequação técnica, conformidade legal e conveniência socioeconômica.”

“A Companhia trabalha para dar eficiência à execução de seu orçamento. Os procedimentos licitatórios são realizados de acordo com as normas aplicáveis e proporcionam economia à aquisição de bens destinados a projetos de desenvolvimento regional”, diz o órgão, em nota. “A Codevasf incorpora a seus processos recomendações de órgãos de fiscalização e controle, com vistas ao contínuo aperfeiçoamento de procedimentos.”

Pernambuco

Tanto o contrato para a aquisição de escavadeiras quanto para o fornecimento de tratores foram assinados pela Superintendência da Codevasf em Pernambuco, comandada por Aurivalter Cordeiro. Ele é ex-assessor do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), líder do atual governo até dezembro do ano passado.

Nos últimos anos, Fernando Bezerra enviou ao órgão emendas do orçamento secreto, por meio do qual parlamentares destinam verbas da União sem serem identificados. Dois ofícios obtidos pelo GLOBO contêm o nome do parlamentar do MDB como o responsável por destinar R$ 125 milhões à Codevasf local, que dispôs de um caixa de R$ 503 milhões em 2021. Os repasses acabam rendendo dividendos políticos a outro integrante do clã.

Texto: Natália Portinari e Patrik Camporez 

Jornal O Globo