O Brasil não quer mais saber de Glauber, que hoje faria 80 anos

Se estivesse vivo, o cineasta Glauber Rocha faria 80 anos nesta quinta-feira (14).

Ele morreu aos 42 anos, em agosto de 1981.

Em 1964, aos 25 anos, estarreceu o mundo do cinema com Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Em 2019, o Brasil não quer mais saber de Glauber Rocha, seu mais importante cineasta.

O Brasil não quer mais saber de Glauber, que hoje faria 80 anos

Isto é o povo! Um imbecil! Um analfabeto! Um despolitizado!

A fala do personagem de Jardel Filho ecoa há mais de 50 anos!

Para mim, o nosso maior e mais instigante filme político é Terra em Transe.

O Brasil continua muito parecido com o Eldorado de Glauber Rocha.

Unidos em Glauber, o gênio do construtor e o mito do demolidor gestaram um filme que fala das nossas questões cruciais. Falava em 1967. Continua falando agora, mais de meio século depois.

Esquerda, direita, populismo, messianismo, o papel dos intelectuais, o povo, a desigualdade, o autoritarismo, o nosso destino enquanto Nação.

Terra em Transe, se tudo isso fosse pouco, ainda é absolutamente devastador como delírio estético.

A questão é que, para muitos, o filme de Glauber Rocha é tosco. Hermético. Incompreensível.

Quase ninguém quer enfrentá-lo.

Mas o problema pode ser o empobrecimento intelectual das nossas plateias. A ausência de uma crítica como a que se tinha na época em que o filme foi lançado. A falta de um ambiente propício a esse tipo de cinema.

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Lembro que, no dia seguinte à morte de Glauber, o Jornal do Brasil circulou com textos assinados pelos críticos Ely Azeredo e José Carlos Avellar.

Um deles mencionava o gênio do construtor, o cineasta que levou o cinema brasileiro a obter grande prestígio internacional com os filmes que realizou, sobretudo Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro.

O outro artigo falava do mito do demolidor, a figura de opiniões polêmicas e discurso muitas vezes incompreendido, principalmente quando enxergava nos militares que tomaram o poder em 1964 um caminho que levaria o país à redemocratização.

Lembro das duas imagens registradas por Azeredo e Avellar porque temo que, ao longo dos anos, o mito do demolidor tenha se sobreposto ao gênio do construtor. O que, se é verdade, representa uma profunda injustiça com um cineasta do tamanho de Glauber.

O homem que fez Deus e o Diabo na Terra do Sol com 25 anos e estarreceu os europeus com seu filme não pode ser lembrado só pelas falas desesperadas dos últimos anos de sua vida curta. O realizador que retratou o Brasil no país imaginário de Terra em Transe não pode ser avaliado como se ainda nos guiássemos só pelos confrontos entre esquerda e direita.

Prefiro a percepção que, de longe, Martin Scorsese tem do significado de Glauber Rocha. Cineasta e pensador do cinema, o americano de origem italiana vê e revê os filmes de Glauber e os apresenta aos seus atores.

É um contraponto  aos cinéfilos e homens de cinema que, entre nós, detratam Glauber, subdimensionam a sua obra e reforçam a tese de que, nele, o mito do demolidor é mesmo muito maior do que o gênio do construtor.

Melhor fundir os dois, enxergando em Glauber um cinema que nasceu da sua profunda inquietação criativa e da combinação desses elementos. O construtor e o demolidor, ambos movidos por uma grande ambição e um extraordinário desejo.

Nas imagens e nos sons que trazem Ford, Kurosawa e Villa-Lobos para o Sertão da Bahia em Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Nas questões cruciais ainda não superadas pelo Brasil nessas mais de cinco décadas que nos separam de Terra em Transe.

No delírio de A Idade da Terra, síntese do seu desespero e também da sua ousadia estética.

A ambição e o desejo de Glauber falam do cinema brasileiro e do nosso destino como Nação