Saúde
31 de julho de 2022
11:30

Maioria dos paraibanos sem dentes têm renda de R$ 261 a R$ 1.212

A Paraíba possui boa cobertura territorial em saúde bucal, mas isso não implica diretamente no acesso da população a esses serviços.

Matéria por Lua Lacerda

Na Paraíba, 75% dos paraibanos maiores de 60 anos perderam 13 ou mais dentes, conforme dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019. Desse número, 62,3% recebem de ¼ a um salário mínimo, o que equivale atualmente a R$ 261,25 e R$ 1.212, respectivamente, como renda mensal. Ainda, 18,8% não possuem qualquer rendimento ou ganham até no máximo ¼ no salário mínimo. Dados indicam que a pobreza é uma das explicações para a expressiva prevalência dessa patologia no estado. 

A Paraíba possui boa cobertura territorial em saúde bucal, mas isso não implica diretamente o acesso da população a esses serviços. “O fato de existir um quantitativo grande de serviços não representa necessariamente a utilização deles por toda a população, nem representa que aquelas pessoas que mais necessitam também são as que mais utilizam, as que mais têm acesso”, quem explica é o professor de odontologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Edson Hilan. Ele é integrante do Observatório de Saúde Bucal Coletiva e Odontologia Legal.

Gráfico: Lua Lacerda (Jornal da Paraíba).

Problemas bucais impactam diretamente na qualidade de vida das pessoas: desde dificuldades para se alimentar, falar e interagir socialmente até a dificuldade em conquistar empregos, especialmente quando apresentam ausência dos dentes. “A garantia de acesso aos cuidados em saúde, um dos princípios da universalidade do Sistema Único de Saúde (SUS), ainda não foi efetivada para parte expressiva dos brasileiros, especialmente, à população em situação de vulnerabilidade social e população rural”, afirma o professor Edson.

Maria (nome fictício) tem 25 anos e reside na zona rural do município de São João do Rio do Peixe, Sertão paraibano. Ela cresceu ouvindo sua mãe lembrar que, na infância, às vezes não tinha creme dental e, como alternativa, se colocava as raspas de Juá de molho para escovar os dentes.

“Minha mãe usa chapa de dentes desde os 40 anos. A primeira vez que ela foi ao dentista tinha 30 anos e foi para arrancar um dente que estava com hemorragia. Na época, ela dependia das outras pessoas para se deslocar até a cidade e na zona rural não tinha dentista. Ela só foi ao consultório em uma situação de emergência”, relata.

 Foto: Coordenação de Saúde Bucal de João Pessoa/SMS-JP/Divulgação 

Para entender o contexto paraibano, precisamos saber que “cobertura é diferente dos conceitos de acesso e utilização dos serviços de saúde”, dá ênfase o pesquisador. “A cobertura é calculada com base no quantitativo de serviços implantados em relação a população de um determinado local e por isso, de acordo com Noronha (2013), a cobertura é entendida como a possibilidade quantificada de obter o cuidado a partir da quantidade de serviços disponíveis, podendo não ser efetivada em utilização por diversas razões, como por exemplo por questões de acessibilidade, de formas de agendamento, de horário de funcionamento, entre outros, o que gera barreiras aos indivíduos na busca do cuidado”, explica.

 Edson Hilan é membro do Observatório de Saúde Bucal Coletiva e Odontologia Legal. Foto: arquivo pessoal. 

Quanto à cobertura em saúde bucal, a Paraíba possui um indicador elevado de 93,12%, sendo o segundo maior do Nordeste e um dos maiores do Brasil. Significa que mais de 90% da população do estado possui uma unidade de saúde próxima a sua residência. “Entretanto, para ter acesso efetivo em saúde bucal,  a população necessita procurar o serviço de saúde para realização de diagnóstico e elaboração de plano de tratamento”, afirma o também professor de odontologia da UFPB, Yuri Wanderley Cavalcanti.

Na PB e no BR, idosos tiveram seus dentes arrancados ainda jovens

O SUS foi criado desde o final da década de 80, mas apenas em 2001 a área de saúde bucal foi oficialmente incluída no sistema.

O professor Yuri Wanderley Cavalcanti, explica que, em panorama histórico, a saúde bucal no Brasil, por muito tempo, foi colocada em segundo plano dentro das políticas públicas de saúde. “As iniciativas públicas em saúde bucal sempre foram muito limitadas, concentrando-se em cuidados direcionados a escolares de forma muito pontual. Além disso, quando existia algum tipo de assistência, esta era majoritariamente reconhecida como mutiladora, focada na extração dentária”.

Gráfico: Lua Lacerda (Jornal da Paraíba).
Não é incomum idosos relatarem que tiveram seus dentes extraídos ainda jovens. Infelizmente, essa foi a imagem construída em torno da saúde bucal por muito tempo. Ainda há muita relutância em defender a saúde bucal como prioridade”
Professor Yuri Wanderley Cavalcanti
Gráfico: Lua Lacerda (Jornal da Paraíba).

Embora o SUS tenha sido criado no final dos anos 80, a área de saúde bucal não foi oficialmente inserida dentro do sistema como política. “Então cada estado e município criou suas próprias  iniciativas. A criação do Programa de Saúde da Família nos anos 90 contribuiu para o maior acesso da população a serviços de saúde. Entretanto, esse programa não garantiu a inclusão de equipes de saúde bucal, que só aconteceu no ano 2001”, resgata  Yuri Wanderley.

Só no século XXI é que a população brasileira começou a ter maior acesso à saúde bucal”.
Professor Yuri Wanderley Cavalcanti
Gráfico: Lua Lacerda (Jornal da Paraíba).

Entre os anos 2002 e 2003 houve a pesquisa SB Brasil, que mostrou alta prevalência de problemas bucais na população,  incluindo o elevado número de cáries em crianças e a alta taxa de edentulismo (perda de todos os dentes) entre os indivíduos mais velhos. Esse contexto levou ao lançamento da política nacional de saúde bucal, conhecida como Brasil Sorridente, lançada em 2004. Essa política incentivou significativamente o aumento no número de equipes de saúde bucal e, consequentemente, na cobertura em saúde bucal. Além de promover acesso à atendimento especializado, como tratamento de canal e de próteses dentárias.

Os avanços provocados por esta política puderam ser comprovados na Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (SB Brasil) de 2010, com dados publicados em 2011. “Essa pesquisa demonstrou redução do número de dentes criados entre crianças e aumento da taxa de uso de próteses entre idosos”.  Entretanto, ainda há muito a avançar: “existe uma lei que orienta a fluoretação de águas no Brasil desde 1974, porém ainda não temos abastecimento público com água fluoretada na Paraíba”, diz Yuri Wanderley.

Sabe-se que a fluoretação de águas é o método mais barato, equânime e efetivo para reduzir a incidência de cárie. Entretanto, ainda não temos este tipo de estratégia empregada em nosso estado”
Professor Yuri Wanderley Cavalcanti

“Ou seja, algumas políticas estão disponíveis, mas nem todas são implementadas. Em 2017, a nova Política Nacional da Atenção Básica retirou a obrigatoriedade do cirurgião dentista da Atenção Básica e um estudo nosso demonstrou que isso contribuiu significativamente para a redução do número de equipes de saúde bucal no Brasil. Outros fatores também têm limitado (ou reorientado) a assistência em saúde bucal no Brasil. Um exemplo disso é a nova estratégia de financiamento de saúde bucal na Atenção Básica, que é focado no indicador de cobertura de consulta odontológica da gestante. Então os municípios passam a focar neste parâmetro enquanto outros passam a ter menor valor no planejamento de saúde”, afirma o professor.

Avanço da Paraíba nos últimos anos

Em 2019, o índice de paraibanos acima de 18 anos de idade que perderam 13 dentes ou mais caiu para praticamente zero, segundo dados do PNS. Isso ocorre devido uma maior cobertura para serviços odontológicos restauradores nos últimos anos, constatando-se a evolução favorável no Índice de Cuidados Odontológicos (ICO) em todo o Brasil, conforme explica a coordenadora em saúde bucal de João Pessoa, Camila Castelo Branco. “Essa ampliação é um reconhecimento da importância da saúde bucal na vida do usuário”, afirma.

Hoje a odontologia é vista de outra forma, atualmente temos dentistas em todos os âmbitos de atenção, primária, secundária e terciária, por entender que esse ser humano precisa também ter saúde bucal”
Camila Castelo Branco, coordenador da saúde bucal de João Pessoa
 Camila Castelo Branco (primeira à esquerda) é coordenadora de saúde bucal de João Pessoa. Foto: arquivo pessoal 

Os agravos bucais mais prevalentes na população brasileira e paraibana ainda são a cárie e as doenças periodontais, destaca Camila. “Mesmo que elas sejam passíveis de prevenção mediante procedimentos relativamente simples, como a escovação dentária, o controle do consumo de açúcares, o uso adequado do flúor e visitas periódicas ao dentista, a redução da prevalência e da severidade de tais condições ainda se constitui em um desafio em nível populacional”, diz a coordenadora.

 

Uma das explicações para a expressiva prevalência e incidência dessas patologias é a associação com condições socioeconômicas, políticas e de acesso aos serviços, bem como é influenciada pela diversidade geográfica"
Camila Castelo Branco, coordenador da saúde bucal de João Pessoa

A Pesquisa Nacional em Saúde Bucal, realizada pelo Ministério da Saúde, monitora e estuda o acesso à saúde bucal por toda a população brasileira. A pesquisa é realizada a cada 10 anos, tendo a última sido realizada em 2010 e impedida de ser executada em 2020 por causa da pandemia de Covid-19. Na época, uma década atrás, a Paraíba, bem como toda a região Nordeste, ocupavam as posições mais desfavoráveis. A pesquisa vai ser realizada neste ano de 2022 e a perspectiva, para a coordenadora de saúde bucal de João Pessoa, é que se constante uma diminuição no índice de cárie e restaurações devido ao avanço da cobertura com unidades por toda a capital.

Pandemia e desafios atuais

 Foto: Oral Doctor. 

Dadas as principais vias de transmissão da Covid-19,  a oferta dos serviços odontológicos foi afetada diretamente na pandemia. O impacto foi maior na saúde pública. Diversas instituições mundiais publicaram normativas sugerindo a suspensão dos tratamentos eletivos e priorizando as urgências, “além da inclusão de novos equipamentos de proteção individual, o que fez mudar a rotina dos atendimentos odontológicos, e isso impactou diretamente no acesso da população aos serviços odontológicos”, explica o professor Edson Hilan.

Esse impacto foi maior nos serviços públicos, pois foram os que ficaram mais tempo priorizando apenas os atendimentos de urgência. Essas questões influenciarão negativamente nos quadros epidemiológicos da saúde bucal no Brasil por um bom tempo".
Edson Hilan

Outra questão que afetou os serviços odontológicos, segundo estudos realizados na UFPB, foi o impacto econômico das novas recomendações de biossegurança para a prática clínica odontológica durante a pandemia da Covid-19: “com o aumento em mais de 800% nos custos com equipamentos de proteção individual”, diz o professor. 

“A população mais do que nunca necessita de uma retaguarda dos serviços públicos odontológicos”. Foto: arquivo pessoal.

Atualmente, os atendimentos praticamente voltaram ao que era feito antes da pandemia, no entanto, com grande demanda reprimida devido o acúmulo de necessidades odontológicas acarretadas durante o período de maiores restrições. “Além de todo o contexto socioeconômico que os brasileiros vêm passando, como redução da renda familiar, desemprego, alta nos alimentos, aumento do consumo de cigarro, álcool, problemas psicológicos, todos esses e outros afetam diretamente a condição de saúde bucal, e portanto, a população mais do que nunca necessita de uma retaguarda dos serviços públicos odontológicos para atender às suas necessidades de saúde bucal”, afirma o Edson.

Voltando a sorrir

 “Eu vivo sorrindo por aí”, diz Carol Chaves, após realizar tratamento odontológico. 

Quando criança, Carol Chaves viveu um acidente doméstico onde quebrou seus dois dentes da frente. Ela precisou usar aparelho odontológico, o que a deixava insegura e com baixa autoestima. Assim como muitas outras da sua idade, ela lidava com as diversas cobranças sociais destinadas às meninas. “Desde muito nova, eu sempre tive problemas com minha aparência. O fato de ter que usar aparelho me deixava mais insegura ainda porque eu não me sentia bonita”, diz Carol. 

Ela usou o aparelho por sete anos. “Só que a dentista não me agradava mais e eu não estava mais feliz em ter que usar aparelho. Na época, os dentes já estavam meio alinhados, assim, eu resolvi parar o tratamento. Logo quando tirei, eles ficaram até bonitos, só que eu não gostei tanto porque fiquei ainda um pouco dentuça, então a insegurança continuou e foi se agravando com os anos”, relembra.

Quanto mais eu ia ficando mais velha e ia tendo que lidar com relacionamentos afetivos, mais eu me sentia insegura e inferior às meninas da minha idade, que tinham um sorriso bonito, então isso sempre foi muito chato pra mim”.
Carol Chaves

“Normalmente em ocasiões mais sociais, eu falava com a mão na boca. Falava sem abrir muito a boca, eu tentava o máximo possível esconder meu sorriso. Eu não tirava fotos sorrindo de forma nenhuma. Eu não sorria em lugar nenhum, não só fotos, eu não sorria pras pessoas, eu evitava sorrir ao máximo e, quando sorria, normalmente eu colocava a mão na frente da boca pra poder tampar o meu sorriso”.  

As coisas começaram a mudar quando Carol iniciou seu atual relacionamento amoroso. Ela afirma que seu namorado começou a incentivar os cuidados consigo mesma. “Quando eu comecei a namorar, ele me deu motivação pra poder assumir o meu cabelo natural. Ele sabia que meus dentes me incomodavam, que eu estava deixando isso de lado e que eu deveria dar atenção pra isso”, diz Carol. 

 Foto: arquivo pessoal 

“Foi quando eu comecei a fazer meu tratamento dentário, desde as coisas mais básicas, fazer limpeza, fazer canal. Eu juntei dinheiro suficiente pra poder fazer um uma faceta em resina e foi a mudança que eu precisava assim na minha vida. Eu vivo sorrindo por aí ”, conta Carol.