VIDA URBANA
Comida e teto: direitos que o ECA ainda não garante
Série de matérias mostra que existem crianças e adolescentes sem acesso aos benefícios previstos no Estatuto.
Publicado em 12/07/2015 às 14:00 | Atualizado em 07/02/2024 às 12:23
Vinte e cinco anos e uma vida sem ter um teto, convivência com a família, estudos e oportunidade para profissionalização. Josélia Carvalho tem a mesma idade da criação da lei federal 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas o direito básico à moradia, estabelecido na norma e que teria garantido a ela o acesso aos demais benefícios nunca foi cumprido. Na moradia improvisada pela jovem, em um prédio invadido no Centro de João Pessoa, o que foi negado a Josélia na infância e adolescência parece cada vez menos acessível aos quatro filhos dela.
A família está à margem da lei e os integrantes podem ser considerados 'Invisíveis do ECA', tema da série de cinco reportagens que serão publicadas a partir de hoje em alusão aos 25 anos do Estatuto.
Em um apartamento com apenas um banheiro e um cômodo, no prédio onde funcionou o antigo Hotel Tropicana, no Centro da capital, a jovem de 25 anos, que foi mãe pela primeira vez aos 15, conheceu a violência doméstica e mudou-se para o local há dois anos, sobrevive apenas com R$381 mensais do Bolsa Família. Ela conta que está acostumada com o improviso e comenta que “nunca teve uma casa de verdade e sempre viveu de favor na casa dos outros”.
Sem comida, estudos e teto, a trajetória de Josélia é a mesma da irmã, Renata Nunes, de 18 anos. Grávida de três meses e com duas filhas, ela divide o cômodo com a irmã, os sobrinhos e o marido. Assim como os dois filhos mais novos de Josélia, as duas meninas de Renata não estão na pré-escola. Direito à moradia, alimentação, saúde e lazer também são coisas que as pequenas não conhecem.
Josélia e a irmã estão entre as 21.154 mulheres que têm filhos cadastradas na Secretaria Municipal de Habitação da capital para receber uma moradia. “Fui criada por uma tia porque minha mãe não me quis e sempre morei de favor na casa dos outros. Estou aqui porque não tenho para onde ir, nem como pagar aluguel. Desde que vim para cá fiz esse cadastro, mas até hoje nada”, disse Josélia.
A realidade das famílias que vivem na capital e não possuem teto se repete em muitos municípios paraibanos. No Estado, cerca de 120 mil famílias estão nessa situação, segundo a Companhia Estadual de Habitação Popular. Em uma das ruas da comunidade Jardim São Lourenço, Bayeux, onde falta calçamento e o esgoto doméstico corre a céu aberto, está a casa de Sileide Gomes. Aos 22 anos e mãe de quatro filhos, ela mora com as crianças e o marido em um cômodo cedido pela mãe. Com pouco espaço em casa, os pequenos fazem da rua alagada área de lazer. “Se eu tivesse uma casa, com certeza, seria melhor para as crianças”, disse.
Quando o poder público não oferece adequadamente o acesso aos direitos fundamentais, o Poder Judiciário entra em cena para garantir o cumprimento da norma. Para o juiz titular da 1ª Vara da Infância e Juventude de João Pessoa, Adhailton Lacet Porto, a criação do ECA foi um avanço no país e apresenta pontos essenciais para o bem-estar e desenvolvimento das crianças e adolescentes. Contudo, o que falta é o cumprimento integral da norma.
“Para assegurar a aplicação dos direitos fundamentais, se faz necessário políticas públicas. Quando essas não são manejadas pelo ente público, o judiciário é provocado e assegura a prestação jurisdicional, determinando em ação civil pública ou mandado de segurança, que esse direito seja disponibilizado às crianças e adolescentes que tenham seus direitos violados”, explicou o magistrado.
Na opinião do cientista político e professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) Gilbergues Santos, “a ideia, defendida em vários setores político-sociais é criminalizar o jovem e o adolescente ao invés de inseri-lo no contexto do ECA”. Mesmo considerando a lei um avanço para um país pouco desenvolvido como o Brasil, ele reforça que é preciso empenho dos gestores públicos para a execução da norma. “Governos e parlamento gostam de aprovar leis, conscientes da questão da baixa efetividade. Mas, não basta aprovarmos tantas leis se não estamos dispostos a cumpri-las”, criticou.
Falta respeito à legislação, diz promotora.
A coordenadora da Promotoria da Infância e Juventude, Soraya Escorel, considera que a realidade é de desproteção integral à criança e ao adolescente e omissão do Estado. Para ela, falta o conhecimento e, sobretudo, o respeito à legislação tanto por parte do poder público quanto da sociedade.
“Somente no dia em que, finalmente, o poder público cumprir efetivamente com o dever institucional de assegurar a todas as crianças e adolescentes – com absoluta prioridade – os direitos elementares da cidadania, estaremos caminhando para os avanços reais tão esperados, que venham a acudir as crianças e adolescentes que se encontram à margem da sociedade”, reforçou a promotora.
Ela lembrou ainda que é necessária a mobilização da sociedade para cobrar dos órgãos públicos a efetivação dos benefícios garantidos pelo ECA. “Nosso grande sonho sempre foi e continua sendo que o Estatuto seja conhecido, respeitado e levado a sério por todos. Há um débito enorme para com a criança e o adolescente e muito a ser feito. É preciso que todos assumam esse compromisso também”, frisou Soraya Escorel.
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