SAÚDE
Cirurgia 'apaga' marcas da violência doméstica
Serviço do Hospital Santa Isabel, na capital, ajuda a reparar marcas da violência doméstica e sequelas físicas de agressões.
Publicado em 10/11/2013 às 12:00 | Atualizado em 26/04/2023 às 15:06
As cicatrizes no corpo de Ana Paula Santos não a deixam esquecer do passado tenebroso que teve quando ainda era casada. Nos 2 últimos anos de união, ela sofreu agressões física e moral do ex-companheiro. As marcas da violência doméstica que ficaram foram tão profundas que ela ficou um tempo sem sair de casa e só usava roupas tamanho G, mesmo tendo manequim 38.
Há 2 meses, quando Ana Paula fez a primeira etapa da cirurgia reparadora, serviço oferecido no Hospital Santa Isabel, da Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP), a vida dela começou a mudar.
Ana Paula ficou casada por oito anos. As agressões, segundo ela contou, começaram quando o marido começou a usar drogas.
“Ele chegava em casa estressado, fora de si, e começava a me bater”, declarou. A princípio ele dava murros, socos e pontapés; depois começou a agredi-la com objetos cortantes, como facas, tesouras, além de chave de fenda e prego enferrujado. As cicatrizes no corpo da doméstica, então com 22 anos, foram se multiplicando.
Ela conta que uma vez o agressor, com uma chave de fenda, machucou tanto a cabeça dela que por pouco a doméstica não teve uma infecção.
“Eu fiquei com feridas abertas na cabeça, um dia minha mãe retirou parasitas dos cortes. O odor da minha cabeça era insuportável”, afirmou a mulher, que hoje fala do passado com naturalidade, sem mais chorar. Com a faca, ele fez vários cortes profundos no corpo de Ana Paula. As marcas foram inevitáveis.
Nesse tempo a doméstica morava em São Paulo e tinha dois filhos pequenos. Apanhou em silêncio. Chorou escondida das crianças. “Às vezes meu filho perguntava por que eu estava machucada e eu falava para ele que tinha caído no quintal”, disse. Os hematomas no corpo de Ana Paula eram constantes.
“Ele tinha alucinações, dizia que eu tinha outro homem, me batia por nada”, explicou. Além das agressões, ela vivia em cárcere privado, não tinha autorização para ir nem na esquina. “Tive que aguentar tudo calada por causa dos meus filhos, eu não tinha como me sustentar sozinha”, destacou.
Ela contou que no dia seguinte às agressões, o agressor pedia desculpas, dizia que “tinha perdido a cabeça” e ajudava a doméstica a cuidar dos ferimentos. Mas à noite, voltava a machucá-la, cada vez mais forte. “Era uma covardia o que ele fazia comigo. Mulher nenhuma merece passar pelo que eu passei. Muitas vezes eu pensava que ia morrer, ficava desacordada”, frisou.
Certo dia, uma amiga de Ana Paula ficou sabendo da violência doméstica e ligou para a mãe da doméstica, que mora na Paraíba.
“Foi quando minha mãe decidiu ir para São Paulo, para me ajudar. Ainda ficamos um tempo por lá e depois de um ano consegui vir para a Paraíba com ela”, afirmou. O ex-companheiro não permitiu que Ana Paula trouxesse os dois filhos. “Vim com a menina, e o menino ficou com a mãe dele. De vez em quando eu vou visitá-lo”, declarou. O ex-companheiro de Ana Paula se encontra preso por tráfico de drogas, mas nunca respondeu um processo sequer por violência doméstica.
Quando chegou à Paraíba, a doméstica ainda viveu dias de amargura, pois as marcas da agressão estavam não só na alma, mas também no corpo. E ela tinha vergonha disso. Por muito tempo evitou sair de casa, só usava blusas de gola alta, apesar da temperatura tropical de João Pessoa, não ia à praia, etc. Se olhar no espelho, definitivamente, não era algo que agradava à doméstica.
Depois de procurar o Centro de Referência da Mulher Ednalva Bezerra, da Secretaria Extraordinária de Políticas Públicas para as Mulheres (SEPPM), Ana Paula entrou na lista para fazer a cirurgia reparadora. No dia 26 de agosto deste ano, ela entrou na sala de cirurgia e parte das cicatrizes foram retiradas, mas ela ainda convive com outras marcas da violência que sofreu. A cirurgia de Ana Paula foi dividida em duas etapas. A segunda vai retirar as marcas das costas, ainda com queloides de alto grau.
Cirurgia repara até 90% das marcas de violência doméstica
Ana Paula procurou o Centro de Referência por indicação da patroa. “Quando me falaram que eu poderia fazer a cirurgia, fiquei muito feliz”, comentou. O corpo dela não voltou a ser do jeito que era antes das agressões, mas a doméstica considera que melhorou 90%. Apesar disso, as marcas ainda impressionam. “Hoje eu não tenho mais vergonha de usar blusa, me acho bonita, sabe?”. Mesmo vestindo manequim 38, ela só comprava roupas tamanho 42 ou 44, para não marcar o corpo.
Depois de vir para João Pessoa, Ana Paula se permitiu viver um novo relacionamento, com novas perspectivas e com respeito.
“Tem gente que se admira porque eu estou namorando, mas eu sempre digo que não tomei trauma de homem. O trauma foi de apanhar. Hoje vivo uma relação diferente, de respeito, de limites, de igualdade”, declarou. O conselho delas para outras mulheres que sofrem violência doméstica é que denunciem os agressores o quanto antes. “Tomem providências, se amem antes de dizer que amam outra pessoa”, frisou.
Para Ana Paula, muitas vítimas de violência doméstica não procuram a polícia porque não têm para onde ir, não trabalham e dependem financeiramente dos companheiros, os quais são os agressores.
“Só Deus sabe quanto do meu sangue foi derramado por ele. Por sorte eu não morri. O fato de eu estar viva hoje conversando com você é um milagre de Deus”, comentou a mulher, que faz acompanhamento no Hospital Napoleão Laureano para as queloides.
Mulheres esperam por cirurgia reparadora
Além de Ana Paula, outra mulher também fez a cirurgia reparadora, mas ela não quis conversar com a reportagem, porque ainda vive muito traumatizada com as agressões que sofreu. Segundo a coordenadora do Centro de Referência da Mulher, Liliane Oliveira, outras cinco mulheres estão na fila para realizar o procedimento.
“Todas foram agredidas com faca, tesoura, objetos cortantes.
Uma delas tem uma cicatriz grande no rosto”, declarou.
A iniciativa das cirurgias reparadoras é pioneira na Paraíba. O objetivo, segundo a Secretaria Extraordinária de Políticas Públicas para as Mulheres (SEPPM), é proporcionar melhor qualidade de vida e resgate da autoestima às mulheres que ficaram com sequelas físicas resultantes das agressões. Podem entrar na lista de espera da cirurgia mulheres que comprovem que residem no município de João Pessoa e que apresentem documentos oficiais que comprovem que as sequelas são consequências das agressões sofridas.
Todos os casos têm que ser encaminhados pelo Centro de Referência das Mulheres, onde a vítima de violência vai ser acompanhada por uma equipe de psicóloga, assistente social e advogada. No Hospital Santa Isabel, onde as cirurgias são realizadas, as mulheres recebem acolhimento de uma equipe multidisciplinar. Após a cirurgia, as mulheres passam pelo procedimento de betaterapia, tratamento que utiliza energia emitida por elétrons para prevenir a formação de queloide e cicatriz hipertrófica.
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