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COMUNIDADE

Força do nordestino encontra representação em símbolos de tradição do Sertão

Publicado em: 08/10/2021 às 9:05 Atualizada em 22/02/2023 às 15:27

A força simbólica do Nordeste brasileiro sempre carregou consigo a simbologia do chapéu de couro, da imagem do cangaceiro - forte e aguerrido - do cacto, sempre resistente às estações, e de uma alimentação baseada na sustentação diária do trabalho pesado. A linguagem, as características do povo nordestino e o poder simbólico do Sertão ganhou mais visibilidade nacional nos últimos meses com a passagem da paraibana Juliette pelo Big Brother Brasil 2021. Resgatando alguns símbolos, muitos passaram a associá-los à paraibana, como o cacto e o chapéu. Mas, na verdade, eles sempre representaram a identidade do Sertão.

Apesar de, para nós, sempre terem marcado a história do Nordeste, os símbolos que compõem a identidade do sertanejo e que conferem uma grande singularidade ao registro sócio-cultural da resistência foram criado, conforme o professor Elder Patrick, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), há pouco tempo. Ele explica que existem dois “nordestes”: o territorial e o nordeste do interior.

O que nós chamamos territorialmente de Nordeste é a união de nove estados, com oito capitais banhadas pelo mar. “Esse território já era conhecido há muito tempo, com três grandes polos históricos, como Salvador, São Luís e Recife”, explica o professor. O que é novidade, no entanto, é o Nordeste do interior, o Nordeste rural, o Nordeste árido, das secas, do vaqueiro, da civilização do couro, dos grandes rebanhos bovinos e o Nordeste das caatingas, da seca e de ícones históricos como o coronel, o vaqueiro, os líderes messiânicos, líderes religiosos e das figuras dos líderes do cangaço, como Lampião e Manoel Silvino. 


				
					Força do nordestino encontra representação em símbolos de tradição do Sertão
Da esquerda para direita: 1- Vila Nova 2- ? 3- Benjamin 4- Luis Pedro 5- Amoroso 6- Lampião 7- Cacheado 8- Maria Bonita 9- ? 10- Quinta-feira obs: foto tirada por cangaceiro Juriti. Lampião, Maria Bonita e outros líderes do cangaço. Foto: Divulgação
Citação

Esse Nordeste tem 100 anos, no máximo. É o Nordeste do Sertão, das profundezas secas, ressequidas, marcado pela privação, pela dor e sofrimento da fome, que marca a periodicidade das secas recorrentes. Esse Nordeste, a rigor, não existia juridicamente, politicamente e culturalmente. Ele passou a existir quando passou a ser representado”.

Elder Patrick

Dessa forma, é possível entender que a exibição cada vez mais frequente de símbolos do Nordeste, como cactos e chapéus de couro, não passaram a ser representados agora, na figura da ex-BBB Juliette Freire. São representações que sempre fizeram parte da vida do Nordestino e que foram reproduzidas por produções culturais, ganhando mais peso e mais força. Os símbolos passaram a configurar uma identidade específica do Brasil moderno desde o início do século XX. As figuras do vaqueiro, dos líderes messiânicos, os coronéis, os beatos e os líderes do cangaço já eram conhecidos da população do interior, mas não tinha projeção nacional. 

Foi a visibilidade alcançada a partir dos anos 1920 e 1930, no século XX, primeiro na literatura, depois na música popular brasileira com o baião de Luiz Gonzaga, e depois com a televisão, que esse Nordeste rural se nacionalizou e ganhou projeção.

“Essa narrativa de significado foi tão poderosa, na cantiga, no cinema, na literatura, que ela criou um monopólio de significados, isto é, todas as vezes que alguém fala em Sertão, seja um blogueiro, um jornalista, um transeunte, em qualquer região do país, vem um conjunto de significados que remetem ao Sertão nordestino”, enfatiza Elder. Antes, o Sertão era tudo que estava distante do Litoral, do centro de povoamento e das zonas habitáveis. Com essa projeção, o Sertão passou a representar o Nordeste.


				
					Força do nordestino encontra representação em símbolos de tradição do Sertão
As espécies de cactos são variadas e se espalham pelo Sertão nordestino. Foto: Ricardo Pontes. Ricardo Pontes

À medida que as imagens da vida rústica do Sertão nordestino ganhou as páginas da literatura e a canção popular, além das projeções no Cinema Novo, e mais tarde na televisão, criou-se um imaginário do Nordeste brasileiro como um significado único, mais ou menos homogêneo, com representações culturais como a resistência, a ponto de ser quase redundante falar “Sertão nordestino”. “Basta dizer ‘Sertão’ que todo mundo no Brasil entende e compreende do que se fala”, ressalta o professor.

Comercialização e banalização dos símbolos

O cenário do Nordeste brasileiro mudou. A característica sertaneja, rural, seca, árida, desigual e excludente sofreu transformação. Mas a sua identidade permaneceu. O cangaceiro, por exemplo, não existe mais, mas ainda está no imaginário, por isso o seu chapéu ainda é tão utilizado como símbolo da identidade nordestina. Além de força, traz consigo uma representação de resistência do Sertão, de ser dono da sua própria terra. 

A conexão do Nordeste com o mundo fez com que os seus símbolos também ganhassem projeção. O exemplo de Juliette cai nesse assunto como uma luva, tendo em vista que, em seu momento de atrair a torcida para o reality show, seus administradores das redes sociais incorporaram o cacto e o chapéu de cangaceiro como características fixas da paraibana. A torcida de Juliette passou a também ser chamada de “cactos”, num significado de fortaleza e resistência. A situação ganhou tanta força, que a imagem do cacto passou rapidamente a ser associada à ex-BBB. 


				
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Juliette usa o chapéu de cangaceiro como símbolo de nordestinidade. Juliette Freire. Foto: André Nicolau/Reprodução/Twitter

De acordo com comerciantes locais de João Pessoa, a participação dela no reality show aumentou, na época, a busca por objetos com a identidade nordestina, e o tradicional chapéu de couro mudou até de nome. “A saída aumentou, inclusive a gente já vendia o chapéu de cangaceiro, mas hoje em dia é conhecido como o chapéu de Juliette”, afirmou o empresário Marcílio Júnior. Os elementos que simbolizam o Nordeste da seca continuam a enfatizar o nordestino porque tem a sua representação sempre renovada. Mas, dependendo do seu uso, os símbolos se tornam comerciais e, até certo ponto, banalizados.

“Esses símbolos certamente foram banalizados, porque dos anos 80 pra cá, nos últimos 30 anos, esse Nordeste sertanejo, rural, seco, árido, desigual, excludente, mudou muito, se transformou muito. Esses ícones, esse conjunto de símbolos, não deixaram de existir, mas existem na linguagem literária, televisiva e cultural sobretudo, notadamente, durante o ciclo de festas juninas. São símbolos que estão na origem, na formação da identidade nordestina durante o processo de povoamento do território e formação da sociedade nordestina”, destaca Elder Patrick. 

Esses símbolos que marcam a identidade nordestina, que expressam a ideia de Sertão, a rigor, não existem mais. Mas como qualquer identidade, ela é encenada e teatralizada em algumas situações, conforme explica o professor. Em outras palavras, temos o Nordeste contemporâneo, conectado, com uma juventude muito dinâmica, que atualiza e reatualiza esses ícones que compõem a identidade do passado e que mantém essa representação para o Brasil e para o mundo.

“O cuscuz é meu e pronto”

A frase se espalhou pelas telas brasileiras em tom cômico, dita pela paraibana Juliette Freire, em uma das interações com colegas do Big Brother Brasil. Ao se apossar do cuscuz, Juliette tentava explicar que o preparo feito por um participante paulista, que igualava cuscuz a farofa, não era o que ela conhecia, e que não deveria ser chamado de cuscuz. 

Havia certa razão. O cuscuz, com suas origens específicas e caminhos diversos, significa, na verdade, o preparo. Cuscuz é um prato que resulta da hidratação de um cereal. A simplicidade suplanta os ingredientes, e a popularidade tem muito a ver com um fazer prático, rápido e acessível. 

Esse preparo teve origem a mais de 8 mil quilômetros de distância de João Pessoa. Foi no norte do continente africano que tudo começou, através de personagens do Egito e do Marrocos. De acordo com o historiador paraibano Diego Gomes, a tradição de adicionar água aos cereais é milenar. Os povos berberes, em especial os grupos nômades, espalharam a prática pelo resto do continente, e a levaram à Península Ibérica muito antes da chegada dos portugueses. 

A Península recebeu forte influência de povos árabes. Os contornos indicam, então, que o cuscuz chegou ao Brasil por diferentes carregadores de tradições. Portugueses invasores e africanos escravizados trouxeram o preparo, e os povos indígenas se encarregaram de difundir por aqui o que se tornaria a base da alimentação nordestina. Isso graças à relação que esses povos originários já possuíam com o milho, muito antes do período colonial.

“Precisamos ter uma clareza: a cultura nordestina é fortemente influenciada pela cultura árabe. Não só pelas influências deles à Península Ibérica, mas por um grande fluxo migratório dos árabes ao Nordeste. Existe essa presença é percebida, até hoje, em aspectos culturais, como o caso da alimentação, e em nossos traços étnicos”, explica Diego. 

Sendo o cuscuz o preparo, onde o saber chegava era posto em prática com as matérias-primas abundantes de cada local. Com o solo fértil das Américas para milho e mandioca, os alimentos passaram a protagonizar o fazer do cuscuz no Brasil. 


				
					Força do nordestino encontra representação em símbolos de tradição do Sertão
A produção do milho se adapta bem ao clima semiárido, isso o torna farto e barateia a farinha que dá base para o cuscuz. Foto: Mario Aguiar.

Se espalhou diferente em cada região. Há o cuscuz marroquinho, que em 2021 recebeu do Comitê de Patrimônio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) o título de Patrimônio Imaterial da Humanidade. No Sudeste, há o cuscuz paulista; no Centro-oeste há populações indígenas que fazem o preparo com base na farinha de mandioca. Mas nenhum tão popular quanto o simples cuscuz do Nordeste. 

A produção do milho se adapta bem ao clima semiárido, isso o torna farto e barateia a farinha que dá base para o cuscuz. Sem grandes tecnologias, uma simples panela e um pano davam conta de produzir um alimento sinônimo de fonte de energia para um dia de trabalho. 

A região Nordeste é atravessada por dificuldades econômicas reais. Apesar de ser celeiro tecnológico, intelectual, cultural e natural, sofreu embargos que resultaram em estatísticas infelizes no que tange o enriquecimento populacional.

Um corpo com fome padece no sofrer, e o nordestino, não graças a si, mas a uma construção desigual que se fez em território brasileiro, segue marcado por tal sofrimento. Conforme levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), o índice de insegurança alimentar ficou acima dos 70% no Nordeste em 2020, a média nacional é de 55,2%. A fome, por outro lado, atingiu 13,8% das casas desta região. 

Diego Gomes acredita que esse chão histórico está atrelado à popularização do cuscuz como elemento alimentício de destaque. 

Citação

Se criou a ideia de que a presença do cuscuz salvou a vida do sertanejo, isso trouxe um caráter simbólico muito ligado à ideia de resistência do nordestino. O Sertão tem uma relação estreita graças à larga presença do milho nas regiões áridas".

Diego Gomes

Outro fator que aproxima o cuscuz dos lares de baixa renda do Nordeste é que, em tempos de Brasil escravocrata, o preparo com a farinha de milho era a base da alimentação nas senzalas e aldeias indígenas, quando a insegurança alimentar era quase que a única realidade apresentada a esses povos: “esse passado concedeu ao alimento uma alcunha de ‘comida de pobre’, como outros alimentos trazidos e popularizados a partir de grupos minorizados do país”, conta o pesquisador. 

“O cuscuz remete à ousadia do nordestino pobre em permanecer vivo frente a tantas dificuldades impostas pela desigualdade social e as explorações”, diz Diego Gomes.

Mais que um símbolo por gostar, o cuscuz muitas vezes se põe como o que o nordestino tem. A professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal da Paraíba, Cinthia Rodrigues, descobriu outros fatores que precisam ser levados em consideração em seus estudos sobre nutrição popular. De acordo com ela, o cuscuz é um alimento energético, com índice glicêmico médio, isso permite que ele possa ser ingerido pela população em geral, o que reduz qualquer tipo de limitação quanto ao consumo. 

O baixo custo do flocão, que apesar do encarecimento de produtos nos últimos tempos, não vê o meio quilo passar dos R$2, é uma das razões da fama. O preparo rápido, com pouco uso do gás de cozinha, agrega mais um fator de economia para populações mais vulneráveis. 


				
					Força do nordestino encontra representação em símbolos de tradição do Sertão
As sementes crioulas, também conhecidas por sementes da paixão, são variedades desenvolvidas, adaptadas ou produzidas por agricultores familiares ou camponeses..

Mesma tradição, outras feituras

Por ser passível de valorização nutricional, simbólica e representativa, o prato ganhou contornos distintos das raízes desiguais. Enxergando no cuscuz uma simbologia única quando se trata do comer no Nordeste, um grupo de agricultores do Polo da Borborema investiu na elaboração de um fubá orgânico, com base em sementes crioulas de milho. 

O Polo é formado por uma rede de 13 sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores rurais, distribuídos em mais de 14 municípios da Paraíba. Há mais de 25 anos o grupo composto por mais de 150 associações trabalha em um projeto de desenvolvimento de alimentos com base na agroecologia. O trabalho acontece através de formações e oficinas, onde os saberes técnicos se encontram com o conhecimento popular da agricultura familiar. 

As sementes crioulas, também conhecidas por sementes da paixão, são variedades desenvolvidas, adaptadas ou produzidas por agricultores familiares ou camponeses, assentados da reforma agrária, quilombolas ou indígenas, com características determinadas e reconhecidas pelas respectivas comunidades. 

De acordo com Giselda Bezerra, agricultora familiar e presidente da Cop Borborema, cooperativa responsável, a produção do flocão orgânico é feita a partir de bancos comunitários de sementes, com uma rede produtiva que vai desde os agricultores responsáveis pelo plantio e colheita, até os responsáveis pela embalagem e distribuição. 


				
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O foco passa longe do vislumbre de um grande negócio. Está mais próximo de um cultivo constante, agraciado pelo clima nordestino. Foto: Arquivo Pessoal/Polo da Borborema.

O banco mãe das sementes está localizado em uma comunidade de Lagoa Seca, no Agreste da Paraíba. Poucas máquinas foram adaptadas para produção, e em janeiro a cooperativa de agricultura familiar camponesa do Polo da Borborema conquistou registro legal, o que permitiu a comercialização.

O núcleo de vendas é regional, alcança as cidades que fazem parte do Polo da Borborema, e pontos de comércio agroecológico em João Pessoa e Recife. A seca deste ano prejudicou a plantação, os objetivos agora são discretos: pretendem reduzir as vendas, fazer um estoque e garantir que o produto não falte para a própria equipe envolvida. 

Segundo Giselda, o foco passa longe do vislumbre de um grande negócio. Está mais próximo de um cultivo constante, agraciado pelo clima nordestino, capaz de garantir na mesa de quem planta um cuscuz saudável que nunca falte.

Pulverizado pelas populações de baixa renda, a transformação do cuscuz em símbolo do Nordeste o faz estar presente em casas de famílias de alta classe, ainda que não consumido com a mesma frequência. O aspecto simbólico é o que leva as variações de cuscuz aos hotéis, pousadas e restaurantes que, dispostos a apresentar aos turistas a culinária típica da região, colocam o cuscuz em primeiro plano. 

O vapor amarelinho que não falta na mesa traz de volta até quem está longe de casa. Como uma força da natureza, que atravessou séculos ao encontro de um povo que devolve em orgulho a força adquirida pela tradição. 


				
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As sementes das plantas apontam para o sonho de um futuro orgânico. Foto: Arquivo Pessoal/Polo da Borborema.

O Nordeste entre espinhos: belezas e sentidos dos cactos da Caatinga

O chamado Nordeste do interior, apresentado aqui como a representação da região que surgiu recentemente, atrelada à resistência que o povo nordestino teve que desenvolver para lidar com os desafios da seca e da desigualdade, costuma ter uma imagem específica. 

Os galhos secos dos campos da Caatinga, esbranquiçados em período de longas secas, sem folhagens vivas para colorir as telas. É assim que muitos veem a região. Com pitadas de reducionismo, pois apesar de ser também, o Nordeste não é só isso. E se fosse, belo seria. Com uma variedade de vegetação, se destacam as plantas cactáceas e suculentas, vestidas de resistência para sobreviver ao clima semiárido.

Entre os símbolos recém utilizados na mídia para retratar a região, os cactos tomaram conta de um destaque metafórico que se tornou comercial. Conforme o levantamento do Instituto Brasileiro de Floricultura (Ibraflor), em 2020, o mercado de plantas ornamentais em vaso teve um aumento de 10 a 20% nas vendas, parte dessas representadas por cactos e suculentas, queridas por serem de fácil cultivo. 

O botânico e consultor ambiental Ricardo Pontes explica que a família botânica dos cactos é um dos mais diversos grupos de plantas com flores. Atualmente, são reconhecidas cerca de 1.300 destas plantas nas Américas, sendo que a região do México, Andes e Brasil possuem a maior riqueza de espécies. 


				
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No valor simbólico, o cacto também é associado à resiliência do povo sertanejo. Foto: Ricardo Pontes. Ricardo Pontes

Para o território brasileiro os pesquisadores já catalogaram 292 espécies, das quais 205 são endêmicas, ou seja, só podem ser encontradas no Brasil. Esse número representa uma alta taxa de endemismo. No país há representantes de cactos em todos os biomas, o pesquisador explica que, por mais que sejam associados a um clima seco e quente, existem espécies desde a Amazônia até os Pampas no Sul do país. No entanto, a região Nordeste é a que retém maior quantidade de tipos de cactos em todo o Brasil, com 108 espécies, sendo 86 apenas no bioma Caatinga. 

Essa mesma Caatinga, que abriga o Sertão, é cenário constante das imagens encontradas na busca por cactos na internet. O bioma tem espécies populares de cactos, como o mandacaru, o xique-xique, a palmatória e o coroa-de-frade. No valor simbólico, o cacto também é associado à resiliência do povo sertanejo, que lida com altas temperaturas e sobrevive a condições específicas de um clima que afeta a vida inteira. Essas representações populares estão no imaginário da região, contadas em poemas e cantadas em canções que marcaram época. 

Citação

Mandacaru quando fulora na seca é um sinal que a chuva chega no sertão - Xote das Meninas

Luiz Gonzaga

A poesia cantada por grandes nomes do Nordeste destaca aspectos tradicionais do Sertão nordestino, muitas vezes não contados. As crenças populares, passadas de geração em geração, vê em símbolos como o cacto uma companhia constante presente no cenário da janela. Filho de agricultores da região do semiárido paraibano, David Marxcresceu num sítio da zona rural e encontrou nas belezas da Caatinga saberes que carrega consigo até os dias de hoje. Desde cedo ouvia dos mais velhos que o florescer do mandacaru significava que a chuva estava se aproximando. Para ele, sempre deu certo, a natureza sempre foi aviso e garantia de um plantio bem planejado para a família. 

Citação

És feito mandacaru: cheia de espinhos por fora, por dentro cheia de água - Feito Mandacaru

Luiz Gonzaga

				
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A previsão de chuva na floração dos cactos está relacionada a absorção de umidade por parte das plantas. Foto: Ricardo Pontes.

Ao decidir que rumo tomar na vida adulta, David escolheu estudar, da graduação ao doutorado, o campo e a agroecologia. Descobriu que esse aviso dado pelo mandacaru tem a ver com a capacidade de absorver umidade dos cactos, e segue vendo na cultura popular do nordestino verdades que antecipam os conhecimentos da universidade. O agroecólogo explica que as cactáceas costumam florir durante a noite, o que torna compreensível as canções e poesias que associam o luar do Sertão às flores da vegetação presentes na seca. 


				
					Força do nordestino encontra representação em símbolos de tradição do Sertão

David Marx acredita que o crescer dele no Nordeste do interior trouxe singularidades que nunca se apagarão dentro do peito. Relembra os aprendizados adquiridos com os pais, se diz filho do campo e carrega as tradições culturais por onde vai, sempre contando como é bom ser do mais íntimo Nordeste que existe.

Citação

A partir dessa relação com a Caatinga que surgiu minha inspiração de vida. Sempre tive uma forte relação com o campo, é a identidade que existe em mim. Na minha casa sempre fazemos nossas comidas típicas, criamos animais e nutrimos as origens do campo. Eu uno a teoria com a prática, estudo agricultura e vivo isso. Meus pais são, também, meus professores".

David Marx

O agroecólogo afirma que esses saberes populares são da dinâmica de vida do povo sertanejo. A relação mais forte com a natureza está ligada a uma percepção aguçada ao longo dos séculos para garantir sobrevivência através do plantio. Muitos dos conhecimentos acadêmicos são postos em livros tempos depois dessas noções serem difundidas pela oralidade. 

Pela facilidade de cultivo e custo acessível, o cacto invade casas do campo à cidade grande. Foi por paixão que o botânico Ricardo Pontes transformou o trabalho em parte marcante da vida. Mas precisamente da casa. Ele exibe com orgulho uma coleção de cactáceas, com quase 100 espécies de vários lugares do mundo. O jardim fica na própria casa, e apesar de também comercializar plantas, essa coleção é só para desfrutar. E garante que privilegia os cactos de solos nordestinos. 


				
					Força do nordestino encontra representação em símbolos de tradição do Sertão
“Não resisti às formas, cores, texturas e sabores dos cactos", conta o pesquisador sobre sua coleção..

Com a procura que nunca acaba, o botânico alerta que quem pretende começar uma coleção deve ter cuidado. O futuro colecionador tem que estar ciente que não se deve coletar cactos em seu ambiente natural, o que configura crime ambiental pelas leis brasileiras e internacionais, pois são considerados espécies ameaçadas. A compra deve ser feita com produtores autorizados, que cultivam as plantas a partir de sementes, sem causar impactos nos cactos nativos. 

Imagem

Dani Fechine

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