Pelo segundo ano consecutivo, o Carnaval Tradição de João Pessoa foi cancelado por causa da pandemia da Covid-19. A festa reúne, na avenida Duarte da Silveira, todos os anos, agremiações carnavalescas, formadas por grupos das periferias da capital, como ala ursas, escolas de samba, clubes de frevo e as tribos indígenas. Essas últimas, despertaram a atenção, inclusive, do modernista Mário de Andrade nas suas pesquisas folclóricas de 1938, no Nordeste e Norte do Brasil.
De acordo com a pesquisadora Jessyca Marins, atualmente há nove tribos indígenas carnavalescas em atividade em João Pessoa. São elas: Tupinambás, Tupy Guarani, Guanabara, Xavantes, Tabajara, Papo amarelo, Africanos, Pele vermelha e Ubirajara - oriundas de bairros da periferia de João Pessoa, como Mandacaru, Alto do Mateus, Cristo, Cruz das Armas, entre outros.
Esses grupos são formados por 50 a 80 pessoas e, no desfile do Carnaval Tradição, realizam uma dança dramática, que gira em torno do ritual da matança. A apresentação começa com grandes capacetes, que são os abre-alas. Semelhantes a cocares, os itens pesam em torno de 40 quilos e, na encenação, os responsáveis por transportá-los são os primeiros a morrerem. Após todos serem mortos, aparece o pajé que recita uma espécie de grito de guerra, e depois disso, os indígenas ressuscitam, finalizando o desfile com a dança do sapo.
Nos desfiles das tribos indígenas, há um instrumento chamado gaita, com sonoridade semelhante ao pífano, feito com cano de PVC. Jurandir Dias Pacheco, de 57 anos, toca e fabrica esses instrumentos. Participante da tribo Guanabara, ele relata que faz parte do desfile das tribos desde criança e aprendeu a tocar e a produzir as gaitas aos 16 anos. O gaiteiro lamenta a ausência do Carnaval Tradição por mais um ano.
É muito difícil. Eu venho desde criança dentro do Carnaval Tradição. Sou de uma época que a gente não tinha nem essas fantasias e hoje a gente faz. A gente tá aqui do outro lado, né? Esperando com o coração assim apertado porque quem nasce dentro do carnaval tradição gosta de brincar, de se divertir. É uma maravilha quando a gente está se apresentando”, desabafa.
Jurandir fala sobre a sensação de desfilar na avenida.
“Eu sou gaiteiro, gosto de tocar minha gaita. Quando estou ali dentro da Duarte da Silveira, tiro todos os estresses, esqueço de tudo, para mim é uma maravilha”, recorda.
Uma das tribos do Carnaval Tradição de João Pessoa é a Tabajara, do bairro do Cristo. Maria Helena, a presidente, conta que o grupo chegou a se preparar e confeccionar fantasias. A mulher diz que esperava que pelo menos uma apresentação on-line fosse acontecer.
Por que que não fez uma ‘livezinha’ para a gente? Eu fiz 30 cocares, fiz estandarte, fiz 30 fantasias completas e depois disseram que não tinha. Agora é guardar para o próximo ano”, desabafa.
Tribos carnavalescas e resgate cultural
A pesquisadora Jessyca Marins explica que, apesar da maioria dos grupos não ser originária das comunidades indígenas da Grande João Pessoa, bem como dos integrantes não se auto-declararem enquanto indígenas, os desfiles trazem uma memória da tradição dos povos nativos.
“Apesar dos grupos não se auto-declararem enquanto indígenas, trazem aí uma memória, uma história. Eles acabam atualizando essa memória anualmente. Na encenação, são tribos indígenas rivais disputando território, outros dizem que retratam um pouco a invasão do homem branco e disputa por território”, relatou.
Ela classifica essas tribos carnavalescas como uma forma de hibridismo cultural, uma vez que muitos povos indígenas na Paraíba migraram para os centros urbanos e conservaram determinados aspectos culturais.
"É uma expressão tradicional e secular e é também um hibridismo cultural, afinal, a cultura é dinâmica. Houve na Paraíba, e em todo o Nordeste, um processo de ocultamento dos povos indígenas. Os Tabajaras, por exemplo, foram expulsos do seu território no Conde e migraram para os bairros de João Pessoa".
Ela também comenta que era no caráter lúdico e festivo do Carnaval que muitos indígenas se sentiam à vontade para acionar sua identidade sem correr o risco de perseguição.
“Muitos indígenas passaram pelo processo de ocultamento e negação da sua identidade para não serem perseguidos. Então o carnaval se tornaria esse momento onde esses indígenas poderiam acionar essa identidade sem correr o risco de serem perseguidos porque teoricamente seria somente uma fantasia de Carnaval”.