compartilhar no whatsapp compartilhar no whatsapp compartilhar no telegram compartilhar no facebook compartilhar no linkedin copiar link deste artigo
Compartilhe o artigo
compartilhar no whatsapp compartilhar no whatsapp compartilhar no telegram compartilhar no facebook compartilhar no linkedin copiar link deste artigo
compartilhar artigo
Imagem destaque
home icon Home > cotidiano
COTIDIANO

Com redução de assassinatos e fora da lista de transtornos da OMS, pessoas trans ainda buscam mais que visibilidade

Publicado em: 29/01/2022 às 8:19 Atualizada em 29/01/2022 às 9:09

Entre números e marcos históricos, o Dia Nacional da Visibilidade Trans, neste 29 de janeiro, é uma data para tratar de direitos básicos que não são assistidos, bem como para afirmar que a existência de pessoas transsexuais não se resume às violências que são noticiadas com frequência. 

O ciclo de violência experienciado por este grupo tem como extremo a morte, sendo o ápice da transfobia. Mas, para além disso, vai do uso do pronome de tratamento inadequado, passando pelo ato de tratar a identidade de gênero como doença e se revestindo de opressões diárias. 

Em 2021, a Paraíba registrou uma queda no número de assassinatos de travestis e transsexuais. Os números foram divulgados no dossiê anual da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra). De acordo com o documento, entre 2017 e 2021 foram 25 mortes. O ano com maior número de assassinatos foi 2017, com 10 casos, colocando o estado no sétimo lugar no ranking do país.

Ano passado foi o ano com menor registro, com duas mortes. Com as duas perdas, em 2021 a Paraíba ficou em 19º diante da média nacional, que chegou a 140 mortes de pessoas trans no total. Apesar dos números, o estado não passa ileso pelo alargamento da violência. 

No ano marcado pelas quedas de mortes, um grupo de mulheres trans que trabalham como garotas de programa no Centro de João Pessoa foi à polícia denunciar violências que vinham acontecendo com recorrência nas ruas, e que os agressores eram sempre os mesmos. Homens que passavam em carros com vidros escuros e jogavam objetos contra elas, enquanto faziam xingamentos. 

O caso foi notificado em dezembro. Procurado pelo JORNAL DA PARAÍBA esta semana, o delegado Marcelo Falcone, responsável pela Delegacia de Repressão à Homofobia, Racismo e Intolerância Religiosa, informou que a denúncia ainda está sendo investigada e que nenhum suspeito foi identificado ainda. 

Michelle Agnoleti é socióloga, advogada e pesquisa sobre a criminalização e patologização das pessoas trans, para ela a queda no número de mortes de pessoas transexuais é um dado que deve ser analisado com cautela, já que existem casos de subnotificação das violências. 

Segundo ela, alguns fatores corroboram para isso: a pandemia de Covid-19 influenciou o levantamento e a sistematização de dados de diversas políticas públicas, além do não reconhecimento da identidade de gênero dessas pessoas, que faz com que muitas mortes sejam computadas pelo sexo que consta nos documentos pessoais.

Citação

Travestis e transexuais sofrem diversas violações de direitos a partir da negação do reconhecimento de suas identidades, e são excluídas dos mais diversos ambientes por preconceito. A violência letal é apenas a face mais visível da transfobia que desumaniza esses corpos. Diversas agressões sequer são percebidas”

Michelle Agnoleti, socióloga

Ela, ele e elu: quando pronomes corretos significam dignidade

As diferentes camadas são vivenciadas de diferentes formas, a depender de quem vive. Para a atriz paraibana Letícia Rodrigues, demorou mais de 10 anos entre sua imagem feminina ser apenas uma figura artística e a conclusão do seu processo de transição de gênero. Hoje, nos palcos e fora dele, é de ‘ela’ que Letícia exige ser chamada, e acredita que o teatro lhe blinda de violências maiores. 

“Comigo está sendo diferente de outras meninas, o teatro me fez ser a mulher que sou e sendo artista todos me respeitam e me chamam de Letícia Rodrigues, porque eu sou muito transparente nesse assunto”, relata. 

Mas essa transparência não evita que errem.

Citação

Algumas pessoas me chamam pelo masculino e faço questão de corrigir. É simples o ato de respeitar nossa condição. Há uma diferença de opção e condição, e não é uma escolha ser pessoa trans, é uma condição”

Letícia Rodrigues

				
					Com redução de assassinatos e fora da lista de transtornos da OMS, pessoas trans ainda buscam mais que visibilidade
Letícia sente que está furando a bolha das opressões que lhe silenciaram..

Aos 35 anos, Letícia vivencia uma experiência que é possível para uma parcela pequena da sociedade. Ela chama o seu processo de transição de gênero de ‘furar a bolha’ em busca de uma liberdade que lhe faz feliz, e esse movimento tem sido mais alegre que triste. Um julgamento que costuma ser presente para muitas pessoas trans é o de familiares, a não aceitação de pais é uma realidade ampla no Brasil.

De acordo com a Antra, estima-se que 13 anos de idade é a média em que travestis e mulheres trans são expulsas da casa da família. Essa não foi a experiência de Letícia, seus pais não estão mais vivos. No entanto, acredita que estaria na parcela menor entre as suas companheiras, estaria com as que recebem o afeto familiar, que costuma ser tão negado. 

O erro de um pronome para uma pessoa trans não é um erro mínimo. Fere, muitas vezes, a humanidade de quem já vivencia diversas outras violências cotidianas. A socióloga Michelle Agnoleti acredita que tratar alguém pelos pronomes correspondentes ao gênero com o qual essa pessoa se identifica é uma questão de respeito à sua dignidade humana. 

Para ela, atualmente é difícil justificar a recusa ao tratamento correto por desinformação, sendo muito mais plausível atribuir esse erro à discriminação e ao preconceito. “Negar tratar uma pessoa trans pelo nome e gênero com o qual ela se identifica é transfobia, e constitui crime”, conforme a pesquisadora. 


				
					Com redução de assassinatos e fora da lista de transtornos da OMS, pessoas trans ainda buscam mais que visibilidade
Nos palcos Letícia sempre se sentiu 'ela'. Foto: Arquivo pessoal.

É essa negação da identidade que atravessa Caíque Costa todos os dias. Aos 34 anos, celebra em 2022 o terceiro ano desde sua transição de gênero. Para ele, o momento veio tarde. Desde a infância guardava um desconforto quanto a identidade feminina que tentavam lhe impor, mas foi na fase adulta que se sentiu pronto para viver a mudança externa e se assumiu enquanto um homem trans.

O início de sua transição foi marcada pelo acolhimento coletivo, passou a fazer parte do Coletivo Petris, grupo paraibano onde homens trans se juntam para gerar discussões e lutar por políticas públicas. Apesar de nunca estar só, viu que isso não era o bastante para que sua identidade não fosse mais negada.

Citação

Desde que comecei minha transição foi difícil me adaptar, ainda hoje sinto os incômodos de estar sempre educando as pessoas de como me "tratar". Minha mãe até hoje não consegue me chamar no masculino”

Caíque Costa

A discussão sobre pronomes de tratamento ganhou destaque com a participação da cantora Linn da Quebrada no Big Brother Brasil de 2022. Sendo, com recorrência, chamada pelo pronome masculino, a travesti (como ela se identifica) se viu tendo que pedir para que a chamassem de ‘ELA’. Apesar de ser uma violência televisionada, o ativista é um dos que acreditam que há uma importância nessa afirmação de si.


				
					Com redução de assassinatos e fora da lista de transtornos da OMS, pessoas trans ainda buscam mais que visibilidade
Caíque sente orgulho se lutar, com seus companheiros, por políticas públicas inclusvas. Foto: Arquivo pessoal. Caíque sente orgulho se lutar, com seus companheiros, por políticas públicas inclusvas. Foto: Arquivo pessoal

“Achei importante ter pessoas como a Linn em rede nacional expondo as nossas lutas, às vezes também sinto vontade de tatuar ‘ELE’ na minha testa, igual ela fez, para que alguns entendam”, defende Caíque. 

Apesar dos desafios, ele acredita que, devido à transição hormonal, para alguns homens trans o entendimento externo da identidade de gênero acaba sendo mais fácil que para muitas mulheres trans. 

“Com familiares é mais difícil fazer com que alguns se acostumem, respeitem e  chamem você pelo nome que te faz bem”, conclui.


				
					Com redução de assassinatos e fora da lista de transtornos da OMS, pessoas trans ainda buscam mais que visibilidade
"Às vezes também sinto vontade de tatuar ‘ELE’ na minha testa, para que alguns entendam”.. "Às vezes também sinto vontade de tatuar ‘ELE’ na minha testa, para que alguns entendam”.

Para além do ‘ela’ e ‘ele’ existem pessoas trans que se sentem desconfortáveis dentro das caixinhas de gênero pré-existentes. As pessoas não-binárias são consideradas trans por não se sentirem pertencentes ao sexo que foi imposto ao nascimento. 

No entanto, o grupo também não se sente parte da binariedade homem e mulher, e prefere que utilizem pronomes neutros. Entre eles está o termo ‘elu’, uma alternativa linguística não formal para que pessoas não-binárias se sintam acolhidas diante de sua identidade de gênero. 

Apenas em 2022 OMS retira transexualidade da lista de distúrbios mentais

Neste mês de janeiro a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de distúrbios mentais e comportamentais. A decisão foi tomada em 2018, 28 anos depois de a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) começar a tratar a questão como transtorno mental. 

A organização colocou 2022 como prazo máximo para que todos os países membros deixassem de considerar patologia ser uma pessoa trans. 

Muita gente não sabia, sequer, que esse estigma não só existia como estava respaldado pelo maior órgão de saúde do mundo. Não é à toa que, ao longo dos anos, uma estrutura transfóbica se estabeleceu na sociedade, com base em normas como a suspensa agora pela OMS. 

A luta pela despatologização (ou seja, retirar o estigma de doença) é antiga nos movimentos LGBTQIA+. Com a mudança, pessoas trans são consideradas agora, pela OMS, um grupo atravessado por uma ‘incongruência’ relacionada à saúde reprodutiva. 

Esse é um segundo passo importante se tratando de conquistas da comunidade LGBTQIA+, tendo sido o primeira a retirada da OMS da homossexualidade da lista de doenças. Isso aconteceu em 1990, de lá para cá gays e lésbicas seguem enfrentando altas doses de homofobia, mas o processo de entendimento de orientação sexual, para além do que achavam ser uma opção, se ampliou bastante.

Segundo a socióloga Michelle Agnoleti, a continuidade da patologização da transexualidade ao longo desses anos contribuiu, desde uma perspectiva institucional, para alimentar o estigma social contra essas pessoas, taxando-as como loucas e degeneradas.

“Se a transexualidade deixou oficialmente de ser considerada uma doença, ainda temos um longo caminho a trilhar ao educar a sociedade para o respeito à identidade de gênero e à dignidade das pessoas trans”, acredita a pesquisadora. 

Imagem

Ana Beatriz Rocha

Leia Também