O Dia Nacional da Alfabetização é comemorado neste domingo (14). Em João Pessoa, 19 jovens e adultos indígenas da Venezuela estão sendo alfabetizados em português pela professora Ana Célia, que utiliza a metodologia de Paulo Freire para superar a barreira do idioma. As aulas acontecem em uma das cinco casas de apoio aos Warao na capital paraibana, onde vivem 58 indígenas.
Os indígenas venezuelanos da etnia Warao migraram para o Brasil em diferentes grupos, buscando melhores condições de vida. Na capital da Paraíba, no momento, são 154 indígenas, vivendo em cinco casas de apoio administradas pela Diocese de João Pessoa, em parceria com o Governo do Estado. O número já chegou a 308 pessoas, como afirma Gorete Rolim, uma das coordenadoras do projeto que acolhe os venezuelanos.
“Já foram acolhidas 70 famílias , totalizando 308 pessoas abrigadas. Esses grupos, contudo, têm o costume de viajar para outros Estados e retornar depois”, explicou ela.
O caminho dos Warao
Os Warao deixaram a Venezuela e atravessaram do Norte do Brasil até o Nordeste, de ônibus ou carona, a partir de 2018. Tradicionalmente, os povos dessa etnia vivem em comunidades ribeirinhas no Norte venezuelano, especialmente na região Delta do rio Orinoco, tendo a pesca, o artesanato e a agricultura como meio de subsistência. De acordo com a Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Ancur), os motivos da migração em massa para o Brasil são a busca de alimentos, trabalho e dinheiro, além do acesso à saúde.
Em um artigo, André Paulo Santos Pereira, promotor de Justiça em Roraima e professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR), diz que problemas ambientais e a invasão das terras dos Warao por agricultores e pecuaristas causaram uma deterioração no modo de subsistência. Com isso, essas famílias se viram obrigadas a migrar para outros locais. No texto, o promotor cita o antropólogo venezuelano Álvaro Garcia Castro, apontando que, nos grandes centros urbanos, os Warao buscam conservar técnicas tradicionais de coleta, feitas por mulheres e crianças. Dessa forma, o antropólogo associa o hábito de pedir nas ruas à coleta de frutos e pequenos animais em suas terras.
O caminho da maioria dos Warao que estão na casa de apoio onde acontecem as aulas da professora Ana Célia, em João Pessoa, começou em Tucupita, na Venezuela. Em seguida, eles foram para Pacaraima, em Roraima, passaram por Manaus, Belém, São Luiz, Recife e, por fim, João Pessoa. O cacique Epifânio, por exemplo, veio em um grupo de 10 pessoas. O líder do grupo é um dos mais assíduos nas aulas e já consegue se comunicar bem em português, algo do qual ele se orgulha.
As pessoas me ajudam no abrigo, posso comer e dormir bem, gosto de viver e trabalhar aqui. Quando cheguei, não sabia nem falar português, nem a, e, i, o, u porque não estudei na Venezuela, mas estou aprendendo com a professora a escrever, ler e falar português".
A turma
Uma das principais dificuldades dos indígenas foi com o idioma, uma vez que a maior parte deles falava exclusivamente o warao. A alfabetização, portanto, tem sido fundamental para que eles aprendam o português e consigam se comunicar com maior facilidade. Para romper a barreira da linguagem, as lições seguem o método freiriano, e as lições são ensinadas a partir do que eles vivenciam na rotina, tendo gravuras como apoio. As aulas começaram em outubro de 2020, com outra educadora, e a professora Ana Célia assumiu em maio de 2021.
Dessa forma, utilizando como exemplo alimentos, pontos turísticos da cidade e elementos culturais dos Warao, aos poucos a turma está aprendendo a falar, ler, escrever e, sobretudo, socializar e transitar pela cidade onde vivem no momento.
Em uma das aulas, eles visitaram a praia do Cabo Branco, em João Pessoa, para, além do lazer, aprender novas palavras.
Utilizamos a metodologia freiriana e transformamos em leitura, escrita e matemática. Sempre resgatamos as culturas, como viviam, em que trabalhavam, se estudavam, como eram. Sempre partimos deles, relata a professora Ana Célia.
Nesta turma, Ana Célia conta que já observa resultados. Alguns conseguem ler, outros aprenderam a juntar sílabas, fazer cálculos e comunicar o básico da língua portuguesa.
Um dos alunos mais assíduos é o cacique Epifânio. O homem de meia idade é casado com Yanira e todas as decisões da casa passam por ele, por isso tem se empenhado bastante para ser alfabetizado em português e aprender o idioma. Um de seus filhos, Amado, de 19 anos, também frequenta as aulas, mas às vezes precisa faltar quando é contratado para fazer algum bico, geralmente descarregando caminhões. Além de Amado, Epifânio é pai de Antonis, de 16 anos, e da pequena Marianis, que tem quatro anos.
Orlando é outro aluno assíduo da professora Ana Célia. Ele também faz questão que seus dois filhos, os adolescentes Lucinda e Juan, participem das aulas para que consigam boas oportunidades no Brasil. Segundo a professora Ana Célia, a mãe dos meninos morreu enquanto eles ainda viviam na Venezuela.
Lucinda, a mais velha, conforme a professora, é uma menina tímida, mas inteligente. Já Juan, é bastante participativo nas aulas e sabe ler textos pequenos. O adolescente sonha em ter uma vida diferente e um bom futuro no Brasil.
Na turma de Ana Célia, também estudam os primos Rosseini e Elvis. Eles vieram para o Brasil com a mãe e a irmã de Elvis, enquanto a mãe de Rosseini permaneceu na Venezuela.
Elvis é um garoto tímido que adora desenhar e jogar futebol. Já Rosseini é mais sociável e sempre bastante sorridente. A jovem, que até o momento desta notícia utilizava pronomes femininos, prefere roupas e corte de cabelo considerados masculinos e, segundo a professora, os colegas falam que já tem uma "paquera" brasileira. Os primos são muito parceiros e se ajudam nas atividades em sala de aula.
O método
Há nove anos, Ana Célia é educadora popular, que é como são chamados os professores que aplicam o método freiriano. Para alfabetizar os venezuelanos, ela passa por uma formação quinzenal com outros professores da educação popular, para compartilhamento de experiências e conhecimentos.
“Como educadora, tenho formação pela associação a cada 15 dias, onde os encontros acontecem aos sábados. Nessas formações há trocas de experiências, aprendizagens, conhecimentos entre educadores e coordenação que é composta por quatro coordenadoras”.
Sobre o método freiriano, a professora explica que é importante porque utiliza a vivência como base.
A metodologia de Paulo Freire é ensinar diante das necessidades que o aluno enfrenta no dia a dia. O aluno adulto está em sala de aula para aprender a superar as dificuldades. Em casa, na rua ou no trabalho, ensinar atividades ao filho, pegar ônibus. Para mim é louvável, vi e vejo resultados, as pessoas foram e estão sendo alfabetizadas”, relata Ana Célia.
O método de Paulo Freire estimula a alfabetização dos adultos, por meio da discussão de suas experiências de vida. Para isso, o professor trabalha a escrita e leitura de palavras presentes na realidade dos alunos, como por exemplo, alimentos e meios transporte. Em 1963, o educador pernambucano, nascido em 1921, chefiou um programa que alfabetizou 300 pessoas em um mês, no município de Angicos, no Rio Grande do Norte.
Apesar de ser elogiado internacionalmente e considerado o patrono da educação brasileira, nos últimos anos, Paulo Freire tem sido alvo de ataques e notícias falsas, especialmente por líderes de extrema direita. Entre as principais inverdades, está a responsabilização do método pelas falhas na educação brasileira, quando as ideias do educador sequer chegaram a ser amplamente utilizadas na rede pública ou rede privada no Brasil.
Nascido no Recife em 1921, Paulo Freire começou a cursar direito, mas deixou a graduação para trabalhar como professor na mesma escola onde terminou o ensino secundário. De acordo com o Fórum Nacional Popular de Educação, o educador foi coordenador da Comissão de Cultura Popular do Programa Nacional de Alfabetização do governo João Goulart e tinha planos de alfabetizar milhões de brasileiros adultos em quatro anos. Contudo, em 1964, após o golpe militar, foi preso por quatro anos e depois exilado do Brasil. No Chile, durante o exílio, ele escreveu o conceituado livro "Pedagogia do Oprimido".
O educador escreveu também outras obras, como "Ao longo da vida", "Educação como Prática da Liberdade", "Ação Cultural para a Liberdade" e "Cartas à Guiné Bissau". O método para educação de jovens e adultos fez com que Paulo Freire recebesse título de doutor honoris causa em 28 universidades importantes, como Harvard, nos Estados Unidos, e Oxford, na Inglaterra.