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COTIDIANO

‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande

Publicado em: 30/09/2021 às 12:17

Cada lance de olhar é inevitavelmente arrematado pela força da resistência. O cheiro de lar circula entre as panelas e extrapola os limites erguidos pelas paredes. O aconchego da solidariedade passa de olhar em olhar, como em elos que formam uma corrente de aço, protegendo a mudança de realidade junto à luta pela garantia de direitos básicos no bairro Jeremias, na periferia de Campina Grande.

A sombra das árvores reflete sobre o gramado, em frente à Cozinha Solidária da comunidade, um caminho que conduz um grupo de mais de 150 famílias a matar a fome. O espaço, ocupado por voluntários e pelo desejo incansável de transformação na tarde do dia 19 de abril de 2021, serve, por dia, cerca de 800 refeições para quem teve a situação de vulnerabilidade social acentuada pela pandemia de Covid-19.

O prédio em que a cozinha funciona tem dois cômodos grandes e outros poucos menores. Toda palavra dita dentro da estrutura, que apresenta a necessidade de alguns reparos, ecoa. Principalmente os gritos de bravura que se misturam com a emoção dos voluntários.

A cozinha, que antes era comunitária, está fechada há cerca de oito anos. Sem utilidade, a antiga bilheteria que está interditada, recebia pagamentos de R$ 1 por almoço e R$ 0,50 a cada jantar vendido.

  • ‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
    | Foto: Voluntária cozinhando arroz na Cozinha Solidária do Jeremias / Foto: Iara Alves
  • ‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
    | Foto: Voluntários descascando inhame na Cozinha Solidária do Jeremias / Foto: Iara Alves
  • ‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
    | Foto: Inhame produzido em assentamento do MST sendo cortado e descascado / Foto: Iara Alves
  • ‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
    | Foto: Caixa da época em que o local funcionava como cozinha comunitária / Foto: Iara Alves
  • ‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
    | Foto: Voluntários preparando refeições / Foto: Iara Alves
  • ‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
    | Foto: Temperos e verduras para preparado de salsicha / Foto: Iara Alves
  • ‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
    | Foto: Cenoura sendo cozida para as refeições servidas / Foto: Iara Alves
  • ‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
    | Foto: Cartaz com frase da sindicalista Margarida Alves sobre a fome localizado na entrada da cozinha / Foto: Iara Alves
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    | Foto: Cartaz em manifesto contra a fome e a favor da educação na entrada da cozinha / Foto: Iara Alves
  • ‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
    | Foto: Voluntárias preparando cerca de 800 refeições / Foto: Iara Alves
  • ‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
    | Foto: Voluntária cortando cenoura / Foto: Iara Alves

Agora, a alimentação é distribuída de forma totalmente gratuita. Para quem trabalha no local, os sorrisos estampados nos rostos conhecidos ao longo da fila de espera não têm preço, mas agregam um valor impossível de ser quantificado.

A renovação do letreiro que estampa o significado pertinente de “Cozinha Solidária” na fachada do espaço se materializou na alegria de ter comida no prato em lares que haviam sido invadidos pelo vazio doloroso da fome.

Citação

A gente sabe que quem tem fome não espera, né? Por isso, a gente uniu forças pra tocar essa iniciativa"

Iara Rodrigues da Silva, coordenadora dos voluntários da cozinha.

‘Fruto de muitas mãos’

Vendo a cozinha fechada e totalmente improdutiva, líderes comunitários e sindicais uniram-se e resolveram ocupá-la de forma pacífica, como lembrou Noaldo de Andrade, de 50 anos, coordenador do centro de formação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no município de Lagoa Seca.

Há cinco meses, os alimentos cultivados em assentamentos do MST se tornam refeições completas.

Esse projeto foi fruto de muitas mãos. Primeiro, se criou o comitê contra a fome aqui em Campina Grande. Com a pandemia, tivemos um aumento muito grande da fome, principalmente nas periferias da cidade. [...] estamos aqui amenizando o sofrimento e a fome”.

As mãos que amorosamente picam “macaxeira, inhame, batata doce, banana” e outras raízes mais legumes e verduras se encontram com as que as colhem com vigor. Cada remessa de alimentos recebida é celebrada com felicidade.

“As mulheres do povo trabalhando para servir alimento para o povo. É o povo cuidando do povo”, destacou Noaldo.

Cada função é dividida em equipe, assim como todo o trabalho que ganha vida cozinha. Pelo menos 12 voluntários assumem as atividades de corte, produção dos alimentos e limpeza do prédio.

Juntos, também fizeram e atualizam os cadastros de quem recebe as refeições. O critério da difícil escolha de quem vai conseguir comer é a necessidade, que faz a líder comunitária Iara Rodrigues da Silva, de 32 anos, ouvir relatos que martelam na cabeça e machucam o coração.

E quando a gente lembra chega até a arrepiar. Em ver que tem pessoas que vem pegar a alimentação e pedem pra gente colocar um pouco mais pra garantir o que ter que comer no outro dia. São relatos assim que nos fortalecem, mas ao mesmo tempo nos entristecem”.

‘Quando eu tenho feijão, eu boto no fogo. Quando não tenho, eu não boto’

“Quando eu tenho feijão, eu boto no fogo. Quando não tenho, eu não boto”. Com essa junção de palavras tristes, Dona Maria de Fátima se tornou protagonista de uma das histórias mais difíceis de se ouvir.

Tímida e sem intimidade com a câmera, a aposentada de 67 anos, pediu para não mostrar o rosto. Mas, havia algo nela que transbordava: a gratidão.

Nos braços cansados de segurar uma realidade difícil há quase sete décadas, a dona de casa acomoda a comida que guardou em pote grande que armazenava margarina. Isso ela fez questão de mostrar, assim como o alívio que sente por ter algo para comer e alimentar a família.

Citação

Só em ter uma jantinha toda noite, é bom demais. No dia que não tem, e eu tiver dinheiro, compro um pãozinho, faço um cafezinho e ‘nós’ passa assim mesmo. Quando tem dinheiro, compra ovo. Quando não tem, não compra. Come cuscuz com manteiga e assim vai.

Maria de Fátima da Silva, aposentada.

				
					‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
Maria de Fátima segura a comida que leva para alimentar a família / Foto: João Alfredo..

A aposentada mora com dois filhos e um neto. Ela contou que um dos filhos trabalha com fretes em uma feira e o neto faz bicos na área da pintura. Sem empregos formais, a situação financeira da casa não chega perto de ser confortável.

Eu não vou mentir, não. Eu sou beneficiada. Mas dá pra quê? Só dá pra comprar os remédios. Uns eu pego no posto. E quando ‘tá’ faltando, eu tenho que comprar”.

Muitas vezes o que sobra das refeições da cozinha solidária, é guardado para ser consumido no almoço do dia seguinte.

Não foi só a fome que deixou de ser um incômodo para a idosa. Sem cozinhar no turno da noite, Dona Maria de Fátima também ganhou uma folga no intervalo de tempo necessário para compra do gás de cozinha, que após aumentos sucessivos de preço desde o início de ano, custa em média R$ 100 na cidade, e compromete cerca de 10% da aposentadoria que ela recebe mensalmente.

Meu gás rendeu uns dois meses, só regava um mês, um mês e pouco”.

Dá para entender a preocupação da aposentada com as despesas da casa. Em Campina Grande, a cesta básica apresentou um aumento de quase R$ 25 desde o início do ano. Já para o gás de cozinha, a alta foi de quase R$ 18, no mesmo período, conforme os levantamentos feitos mensalmente pelo Procon Municipal, segundo mostra a imagem abaixo:


				
					‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
Cesta básica e gás de cozinha têm juntos uma alta de quase R$ 50 em 2021.. Cesta básica e gás de cozinha têm juntos uma alta de quase R$ 50 em 2021.

Enquanto estava na cozinha, a senhora simpática foi surpreendida com uma notícia preocupante. A distribuição de refeições que acontecia cinco vezes por semana, passará a acontecer apenas nas segundas, quartas e sextas-feiras. Pela primeira vez os olhos dela denunciaram tristeza, mesmo com tantos motivos para que esse sentimento se revelasse constante.

Mas a angústia não chegou apenas para acompanhá-la. Com a redução na oferta de alimentos, a baixa de doações e sem condições financeiras para suprir essa lacuna, essa foi a única opção do local.

Foi um fato muito triste, né? Porque a gente sabe que quem tem fome não espera. A gente quer disponibilizar alimentação para aqueles que mais precisam”.

Iara tem mais uma lamentação: a falta de apoio por parte do poder público. Ela contou que os representantes da cozinha tentaram estabelecer um diálogo com a prefeitura. Eles clamam pela revitalização da cozinha comunitária ou pela oficialização da ocupação como espaço para manuseio da população.

A atuação de cozinhas comunitárias, segundo a Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Campina Grande, Olívia Gomes, é louvável, mas necessita de investimento público.

Citação

“As cozinhas comunitárias são medidas excepcionais, mas que deviam ter ajuda dos prefeitos, governadores e Governo Federal.

Olívia Gomes, Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB em Campina Grande.

O Jornal da Paraíba entrou em contato com a assessoria de comunicação da Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) para saber por qual motivo as cozinhas comunitárias da cidade estão desativadas e se há alguma intenção de revitalizá-las ou desenvolver outra iniciativa na área de segurança alimentar. Mas, até a publicação desta reportagem, os questionamentos não foram respondidos. A pasta informou que tenta levantar os dados solicitados.

‘O que falta é emprego, saúde, alimentação na mesa, comida no prato’

Episódios inspiradores também constroem a memória da Cozinha Solidária do Jeremias. Na fila em que se espera presenciar diferentes dores, também se revela a admiração. Prova disso, é de que cinco beneficiados do projeto se tornaram voluntários.

Um deles é Maria Isolda, que se emociona ao oferecer conforto como tempero para a comida que colore o prato dos vizinhos de bairro.

Eu vejo muita família que precisa do alimento daqui. Tem uns que têm medo de um dia aqui fechar e deixar de levar o jantar”.

Cirúrgica, ela aponta, em forma de prece, como assegurar direitos básicos pode fazer a diferença na vida da população.

Citação

O que falta é emprego, saúde, alimentação na mesa, comida no prato e a vacina. O que eu peço é isso, eu oro por isso.

Maria Isolda da Silva, voluntária.

				
					‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
Aviso escrito na porta orienta sobre medidas de prevenção e higiene / Foto: Iara Alves.. Aviso escrito na porta orienta sobre medidas de prevenção e higiene / Foto: Iara Alves.

Cuidados reforçados por causa da pandemia

O medo de contágio pela Covid-19 é um companheiro para a ocupação desde o início, assim como para a equipe de reportagem, que saiu do trabalho em home office excepcionalmente para conhecer e sentir o projeto de perto. Mas o receio, em ambos os casos, não ganhou força para se tornar um inimigo. A prevenção, por outro lado, passou a ser a mais poderosa aliada para quem se doa sem reservas, independente de qual seja a missão.

Na porta do corredor que dá acesso ao espaço em que os alimentos são manuseados, ao lado de uma pia para higienização das mãos, o pedido escrito em lápis escolar é claro e enfático:

Acesso restrito. Uso de máscara e touca, por favor”.

Na cozinha, todos usam máscaras, luvas e toucas. Tudo é descartável, menos a motivação da equipe. Os cuidados são visíveis em todos os processos inclusive na entrega dos alimentos. Apenas uma pessoa pode buscar as refeições, que são armazenadas em recipientes dos próprios beneficiados.

Na fila há a fiscalização do distanciamento, a disponibilização de álcool em gel e a doação de máscara para quem esquece ou não possui condições de ter uma.

Citação

Várias pessoas que vieram receber tiveram a covid e nós não tivemos nada.

Iara Rodrigues da Silva, coordenadora dos voluntários.

Com todos os voluntários vacinados com pelo menos a primeira dose das vacinas, a tranquilidade consegue ser respirada pela equipe, mesmo que por baixo das máscaras.

  • ‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
    | Foto: Voluntárias ficam de luvas, toucas e máscaras dentro da cozinha / Foto: Iara Alves.
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    | Foto: Voluntária colocando luva antes de manusear os alimentos / Foto: Iara Alves.
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    | Foto: Pote de ácool em gel ao lado do filtro, onde a comunidade recebe as refeições / Foto: Iara Alves
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    | Foto: Pia para lavar as mãos na entrada na sala de entrada da cozinha / Foto: Iara Alves.

‘Nunca faltou comida no mundo’: fome x direito à alimentação adequada

O direito à alimentação adequada está previsto desde 1948 na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

O termo “direito humano à alimentação adequada”, no entanto, teve origem, de fato, no ano de 1966, por meio do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais. O documento considera como fundamental o direito de qualquer pessoa estar protegida da fome

Somente em 2010, este direito foi incluído na Constituição Federal. Mais de dez anos depois, em 2021, tem passado longe de ser realidade. Em contrapartida, alguns indicadores infelizes sobem no país.

A pandemia de Covid-19 não tirou apenas milhões de vidas mundo a fora, mas também impactou em aspectos econômicos e sociais.

A fome se tornou uma realidade cruel no Brasil durante a pandemia de Covid-19. De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, realizado pela Rede PENSSAN, cerca de 116,8 milhões de brasileiros viviam em inseguraça alimentar no país, em dezembro de 2020, quando o levantamento foi feito. Deles, 19,1 milhões, aproximadamente 9% da população, passava fome.

A região Nordeste registra a maior quantidade de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, são quase 7,7 milhões.

A Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Campina Grande, Olívia Gomes, acredita que a fome reflete outros aspectos sociais.

Citação

Nunca faltou comida no mundo. O problema não é a escassez, há excedente de comida. O problema é de logística, vontade política e igualdade. A fome é um reflexo da desigualdade, que é a base dessa estrutura que a gente tem, que deixa os pobres muitos pobres e ricos extremamente ricos, vivendo uns ao lado dos outros.

Olívia Gomes, Presidente da Comissão da Direitos Humanos da OAB em Campina Grande.

				
					‘Quem tem fome não espera’: cozinha solidária alimenta 800 pessoas por dia em Campina Grande
Situação de pobreza aumentou 4% na PB entre 2019 e 2021 / Foto: Iara Alves. 78,5% das crianças e adolescentes vivem na pobreza na Paraíba/ Foto: Iara Alves

Seguindo na mesma via, a situação de pobreza cresceu 4% na Paraíba entre 2019 e o início deste ano, segundo indica uma pesquisa feita pelo economista Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre).

Em dois anos, o índice passou de 41,2% da população do estado alcançada para 45,2%.

Sem respostas e a comida, que deveriam ser garantidas pela iniciativa pública, os pratos seguem vazios e o povo segue com fome de alimento e com a sede de uma vida mais digna.

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Iara Alves

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