São 90 anos de vida e de histórias, mais de cinco mil crônicas escritas, a maioria delas sobre João Pessoa, a capital da Paraíba. Um homem de origens incertas que soube trilhar o seu próprio caminho através da leitura e do texto, da capacidade de enxergar poesia nos detalhes, do pioneirismo que conquistou ao redimensionar e potencializar o conceito que se tinha na cidade e no estado sobre a crônica enquanto gênero literário. Este é Gonzaga Rodrigues, o melhor tradutor da capital paraibana.
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Traçar um perfil de Gonzaga neste sábado (5), a propósito, tem uma dupla simbologia. Primeiro porque é o dia em que a cidade sobre a qual ele mais escreveu completa 438 anos de fundação, depois porque é quando se lança oficialmente o filme “O Velho e o Rio”, documentário de Alberto Arcela que conta um pouco da vida do escritor (o filme será exibido pela TV Cabo Branco após o Jornal Hoje).
Gonzaga Rodrigues, pois, nasceu em 21 de junho de 1933. Oficialmente em Areia, mas tão próximo dos limites de Alagoa Nova, aonde de fato cresceu, que muitos confundem sua cidade natal. Não chegou a conhecer seu pai e acabou sendo criado por uma mãe diferente da biológica. Teve uma “infância solitária”, como ele mesmo definiria, e encontrou na leitura uma forma de viajar por mundos diversos.
Estudou em Alagoa Nova e depois em Campina Grande, mas não chegou a terminar o colegial. Declaradamente autodidata, já naquela época abdicava de qualquer conhecimento técnico-científico, lógico, matemático. Importava-se exclusivamente com as leituras, com as histórias narradas, com a escrita. Ensaiou ser poeta, sonhou ser romancista, fixou-se mesmo como cronista.
Como ele mesmo diz ao olhar para trás, já carregando nas costas as nove décadas de vivências, era sobretudo um “vagabundo”. Um homem que, tal como o sentido original do termo no latim, tem a aptidão de vaguear o mundo, as vielas da cidade, em busca das histórias que valiam a pena contar.
Tão apaixonado pela escrita, mudou-se para João Pessoa, a capital paraibana, no início da década de 1950. E fez isso justamente porque, naquela cidade, havia jornal para se escrever. Encontrou-se no jornalismo e, em 1954, fez a sua estreia como cronista. Nunca mais deixou João Pessoa, cidade pela qual se apaixonou, nunca mais deixaria também de escrever os seus textos curtos que eram verdadeiras radiografias poéticas sobre a cidade e a sua gente.
Eu senti de uma vez só a cidade. Até hoje. Setenta anos se passaram, e a cidade ainda vive em mim.
Sobre sua condição de jornalista, admite sem muitas preocupações que nunca foi um bom repórter. Ao mesmo tempo, diz que não tem vergonha de se vangloriar por ter sido um dos primeiros a perceber a potência da crônica como forma de contar as histórias de uma cidade.
“Sempre tive muito cuidado ao ler a cidade. A minha maior inspiração é a sensibilidade”, enfatiza.
Homem de esquerda, com uma vasta bagagem sobre justiça social, sempre colocou essas questões em suas crônicas, sempre teve um olhar crítico e ao mesmo tempo sensível sobre as desigualdades, sempre soube dar voz e visibilidade à população mais pobre da capital paraibana.
Enfrentou dificuldades, superou todas elas. No final de 1963, foi acometido por uma grave tuberculose e passou meses internado no Hospital Clementino Fraga. Conheceu enfermos, pobres, loucos, presidiários no local. Ficou amigo de todos, sem distinção. E foi de dentro do hospital que soube do golpe militar que eclodia em 1º de abril de 1964.
Chegou a entrar na lista de procurados pelo regime, mas foi salvo por José Américo de Almeida, que interviu em favor dele pelo respeito que o ex-governador tinha com a potência literária de Gonzaga.
Ao deixar o hospital, continuou escrevendo, inclusive sobre temas sensíveis à ditadura. Ao relembrar daquelas épocas, solta uma risada sarcástica e diz não ter medo da censura.
A gente dribla a censura. O censor é sempre mais burro do que nós
As crônicas iam se acumulando, os livros sendo publicados, a fama de cronista maior da cidade se consolidando. Na redemocratização, já na década de 1990, conquistou reconhecimentos diversos. Com 60 anos de idade, três décadas atrás, foi eleito imortal da Academia Paraibana de Letras em agosto de 1993. Seis anos depois, em 1999, era agraciado com o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal da Paraíba. Já mais recentemente, em 2013, foi agraciado com o título de cidadão pessoense. Uma mera formalidade, claro, visto há muito ele já se sentir parte daquela terra.
É muito pela sua formação de esquerda, inclusive, que Gonzaga tem no Ponto de Cem Réis o mais impactante espaço urbano de João Pessoa, justamente pelo seu caráter democrático. Praça encravada no centro da cidade, que reúne no mesmo entorno ricos e pobres a debater as mesmas questões.
É fato que essas características de certa forma permanecem até hoje, mas é igualmente verdade que isso já foi mais potente no passado. E essa é uma questão que não deixa de atormentar um homem de 90 anos. O fato de, aos poucos, perceber as mudanças, a chegada de novos tempos que já não combinam tanto com suas próprias lembranças e preferências, a ausência de outros companheiros de geração.
O Café Alvear, por exemplo, “um dos maiores parlatórios de João Pessoa”, que tanto ele frequentou quando mais jovem, há tempos já não existe mais. Como esse, outros tantos espaços já não existe mais. E mesmo o Parque Solon de Lucena, que ele identifica como um dos mais belos parques urbanos do mundo, já passou por inúmeras modificações ao longo das décadas.
A desvantagem de se viver muito é que você vai perdendo as suas referências
Ele fala de características de tempos idos da cidade, mas principalmente dos amigos, que foram morrendo ao longo do tempo e foram lhe deixando só. “Você não imagina a falta dos amigos”, complementa.
É óbvio que ele ainda tem uma família grande que lhe cerca, mas não é bem disso do que ele fala. Ele fala justamente daquele passado em que ele foi tão feliz, tão presente no cotidiano da cidade sobre a qual escolheu viver, escolheu escrever.
“Eu não tenho mais com quem conversar as coisas de minha época. São três ou quatro sobreviventes, todos com dificuldades de se encontrar”, lamenta por fim.