Qual o papel da arte no curso das sociedades? Como ela é usada como elemento político de contestação? Em que medida serve para denunciar injustiças sociais e problemas provocados pelas autoridades públicas de dado país e de dada época? Como direcioná-la de tal forma que chame a atenção das pessoas para irregularidades que afetam enormemente a vida dos mais pobres? Essas são algumas das perguntas que a pesquisadora paraibana Nicole Leite Morais tenta responder em “O Direito à Fraternidade e a Nona Sinfonia de Beethoven”, livro lançado agora no mês de março e que é fruto de sua pesquisa de mestrado na Universidade Federal da Paraíba.
Formada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), Nicole ingressou alguns anos atrás na Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB, instituição em que defendeu sua dissertação em 2020. Foi aprovada e, diante da sugestão da banca de publicar o trabalho em livro, começou a trabalhar no projeto. Ao todo, são 311 páginas em que ela faz uma imersão em mais de 200 anos de arte, discutindo a relação entre Direito e Arte da Revolução Francesa até a contemporaneidade.
Seja a poesia, a música, as artes plásticas, a ópera, a literatura. São vários os campos em que é possível este diálogo entre a arte, o direito, a política.
O livro de Nicole Leite Morais vem sendo bem recebido. Vendido pela Amazon em versão digital e impressa, o livro permaneceu os primeiros dias após o lançamento como os mais vendidos nas categorias Música e Direito da plataforma. “Eu não esperava toda essa procura”, admite, empolgada.
Como adicional, o fato de o livro trazer em suas páginas vários “qrcodes” que permitem ao leitor uma experiência interativa. Enquanto lê as reflexões propostas pela pesquisadora, é possível ter acesso pelo celular às obras de arte e às músicas sobre as quais se está dialogando.
Segundo Nicole, tudo começou quando ela ainda estava escrevendo o projeto para a seleção do mestrado, antes mesmo da aprovação. À época, ela lia um livro sobre a vida de Beethoven, de autoria de Elliot Forbes, quando descobriu que havia uma carta escrita pelo advogado Bartholomäus Fischenich para Charlotte Schiller, datada de 1793, na qual havia menção à intenção de Beethoven em musicar a Ode à Alegria, poema de Friedrich Schiller que falava sobra a fraternidade.
Investigando mais o tema, ela ficou sabendo que o poema acabou integrando o quarto movimento da Nona Sinfonia de Beethoven, lançada apenas em 1824, mais de 30 anos depois. Ademais, a música trata dos lemas da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), ainda que, por exemplo, o texto final da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1879 não aborde a questão da fraternidade.
De certa forma, estava definido o problema inicial de sua investigação acadêmica:
“Será que existia alguma questão na política da época, alguma censura, que impedia Beethoven e outros artistas de falarem sobre os lemas da Revolução Francesa?”, questionava ela.
No fim, contudo, ela foi além em suas pesquisas. E começou a mapear como a arte servia de arma para denunciar as injustiças. E, para além disso, como a arte era um agente muito mais dinâmico e veloz do que o direito.
“Eu pesquisei documentos que mostravam as sessões por trás da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Houve algumas tentativas de incluir a fraternidade no texto, mas isso não aconteceu”, destaca Nicole, falando do medo que os dirigentes políticos tinham de novas insurreições do povo.
Mas, enquanto isso, Beethoven musicava a obra de um homem conhecido por “Poeta da Liberdade” e via os versos serem cantados de forma empolgada pelas tabernas da época.
Não a tôa, a declaração de 1789 precisou ser substituída séculos depois por uma legislação mais moderna, enquanto a Ode à Liberdade segue atual e é hoje o hino da União Europeia:
São vários os exemplos ao longo da história em que o artista tem esse papel transformador de abordar os sentimentos das pessoas. Essas relações políticas e humanas são dinâmicas, sofrem sempre mutações. E o artista aborda essas mudanças antes de o direito dar conta. Porque o direito demora mais para abranger essas mudanças.
Para reconstituir todos esses fatos, o trabalho foi árduo. A autora realizou pesquisas na Alemanha, na Suíça, na França. Garimpou diferentes documentos até chegar a uma reconstituição das diferentes épocas e a catalogar exemplos desse papel transformador da arte.
De acordo com ela, a Revolução Francesa é um marco importante porque marca também a fim do classicismo e a ascensão dos teatros. É quando os artistas deixam de ser patrocinados pela nobreza, que escolhiam os temas sob encomenda, e passam a viver dos próprios lucros dos teatros, permitindo assim que passem a escolher eles mesmos os próprios temas que serão abordados.
“É quando os artistas vão se debruçar sobre os anseios da população, sobre os temas políticos, sobre as questões relevantes de suas épocas”, prossegue Nicole.
O Direito e a Arte
Nicole Leite Morais teve como orientador o professor Marcílio Franca Filho, um dos principais especialistas nos estudos entre Direito e Arte do país. E ela explica que tomou como base o livro “A Cegueira da Justiça”, de Marcílio, para analisar melhor essa interação entre áreas que a princípio parecem tão distintas.
A autora, a propósito, segue falando de Beethoven para apresentar novos exemplos em que a arte dialoga com as questões do povo.
Em Fidélio, por exemplo, o compositor, em sua única ópera da carreira, trata da luta contra a tirania, denuncia a situação precária das prisões, dá protagonismo a uma heroína mulher que consegue resgatar da prisão o seu marido preso injustamente. Já em A Flauta Mágica, de Mozart, as pessoas começam a enxergar que os heróis podem sim derrotar os tiranos.
São obras que dialogam com os problemas do povo e apresentam possíveis soluções. Dão esperanças para as pessoas. Que começam a acreditar que aquelas situações opressoras que elas estavam vivendo iriam passar.
Avançando no tempo, a autora cita também os dois painéis do brasileiro Cândido Portinari que estão na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, batizados de Guerra e Paz. Ela explica que as pessoas que entram na sede da ONU se deparam com o painel Guerra, mas na saída já se deparam com o painel Paz, dando a entender que é no diálogo entre os povos que está o caminho para a pacificação.
A autora paraibana explica, no entanto, que a grande inovação de Portinari é abordar a guerra a partir do sofrimento das pessoas comuns, dos civis inocentes que nada têm a ver com os conflitos.
“Era regra até então ilustrar a guerra a partir dos soldados, mas Portinari aborda o sofrimento das pessoas comuns. E, de fato, nesses cenários de guerra e de disputa entre os governantes, quem mais sofre são as pessoas comuns, as pessoas do povo”, opina. “Isso está muito em evidência agora na guerra da Rússia contra a Ucrânia”, finaliza ela.