Retrato de si como exercício de cura, essa foi a forma que Daiane Lucio encontrou para lidar com as angústias que ganharam corpo na pandemia. As pinturas livres em tecido lhe acompanham em viagens pelo país, com João Pessoa como um destino recorrente, cidade onde expõe parte de suas obras até o próximo domingo (16).
Mulher com mais de 30 anos na bagagem e nas telas, Daiane é natural da cidade de Sorocaba, interior de São Paulo. Foi lá que começou, ainda criança, a se habituar com o cheiro forte das tintas, memória que a pandemia transformou em saudade.
Quando o vírus trancou muita gente em casa, Daiane tinha acabado de voltar de um tempo morando na capital paulista. Tinha posto fim em um projeto de empreendedorismo e decidiu passar a quarentena com os pais no interior. Durante as horas entre as quatro paredes, decidiu revisitar lembranças encaixotadas da infância, como fotos e relatos pessoais.
Havia muitos desabafos de auto-ódio, problemas com a imagem e tristezas de uma infância não compreendida.
Eu não gostava do meu corpo, não me entendia como uma mulher negra. Esse processo é muito comum entre as mulheres da minha geração. Na pandemia revisitei todos esses sentimentos e comecei num profundo autoconhecimento”
E essa descoberta de si passou, diretamente, por sua arte. Para quem estava afastada das pinturas há anos, em três meses na casa dos pais passou a pintar com frequência, sempre tendo como inspiração imagens presentes na sua rotina e no espelho. Na arte de Daiane, a principal função do pincel é o auto retrato. Pintando suas histórias nas mais variadas formas ela acredita que se conhece cada vez mais.
“Desde criança eu gostava de pintura, mas a gente abandona porque dizem que temos que seguir outras carreiras, meu pai também tem uma relação com a arte, ele sempre fez telas contando histórias das fazendas que conhecia como agricultor”, comenta.
De tanto se conhecer através das telas Daiane decidiu dar um passo a mais no processo de autoconhecimento, venceu seus medos e tirou do papel um plano antigo: viajar sozinha.
Eu achava que não era pra mim, que tinha que ter muito dinheiro. Quando eu tive coragem vi que podia viajar várias cidades só com voluntariado. Então eu fui, e levei meu tecido comigo”, relembra confiante.
O tecido é onde ela mantém as cores e desenhos mais fluidos, além de proporcionar facilidade de locomoção. Em junho de 2021, com o avanço da vacinação, ela saiu de São Paulo e realizou o sonho de rodar o Nordeste. O que antes era um autoconhecimento em quatro paredes virou diário de bordo. Nos tecidos Daiane registra os momentos mais marcantes de cada cidade.
“Eu tenho registrado em cada lugar que passo a pessoa que estou sendo naquele momento, o que tô vivendo. São auto retratos que representam o que sinto em cada lugar”, diz a artista visual.
Status solo: uma viajante cheia de si
De junho para cá ela já esteve em sete estados do Nordeste, em mais de 10 cidades, sempre sozinha, sempre se hospedando em hostels e sobrevivendo através do voluntariado. A modalidade é uma moeda de troca, os mochileiros oferecem serviços e ganham como retribuição estadia e alimentação. É uma alternativa muito utilizada por quem sonha em viajar, mas não tem muito dinheiro guardado.
Sobre a experiência de viajar sem companhia, Daiane destacou a liberdade que reivindicou enquanto mulher. Além disso, vê no voluntariado uma oportunidade de viver, intensamente, os locais que visita. Passa de 15 dias a um mês, em média, em cada cidade. Hospedagens simples, convivendo com os moradores locais, os ares são mais de imersão e menos de turismo. E Daiane só vê pontos positivos nisso.
Cada lugar tem uma história muito grande, vivo praticamente uma história a cada mês, tudo isso é muito lindo. Faço tudo que eu pensava que não podia fazer, registrar tudo isso em pintura é o ideal pra mim. Não há outro jeito tão genuíno", acredita.
Na capital paraibana ela está pela segunda vez. A primeira foi em dezembro, quando teve a oportunidade de expor suas pinturas pela primeira vez no hostel em que esteve hospedada, em Manaíra. Pouco mais de um mês depois decidiu voltar, construir novas memórias e dar vazão à novas obras.
Dona do hostel em que Daiane está hospedada, Marina acredita que os intercambistas nunca substituem funcionários. Ela utiliza plataformas que unem esses dois perfis: quem quer receber e quem quer oferecer um serviço, tudo bem regulamentado. Ela tem sua equipe fixa formada por funcionários e estagiários, e a troca de hospedagens por serviços oferecidos pro viajantes vem, para ela, como algo que agrega experiência para ambas as partes.
"São pessoas de áreas diferentes, isso soma muito pra gente naquele tempo em que a pessoa está passando uma temporada do seu circuito de viagem conosco. A gente ensina e aprende com as visões de mundo diferentes. Meu voluntário vem pra somar, nunca pra substituir um trabalhador", explica a proprietária.
A experiência em João Pessoa teve um ponto diferente para Daiane, foi na capital paraibana que ela voltou a ter contato com o que chama de cidade grande. Os últimos meses foram em cidades pequenas, viagens recheadas de cenários minimalistas em termos de extensão de tudo. Foi na Paraíba que o sentido da capital voltou a se impor sobre Daiane, e tudo isso na mesma medida que se sentiu acolhida.
“É uma cidade tranquila, muito boa de ficar mais tempo. A gente vai ficando e não quer mais sair, em João Pessoa tem estrutura para receber qualquer tipo de gente”, relata a viajante.
Em João Pessoa sua principal memória foi de um dia de sol na praia do Bessa, ela registrou o trabalho em vídeo.
Apesar dos contornos chamarem atenção de quem passa pelo hostel, Daiane acredita que são íntimos a ponto de ainda estar perdida quanto ao futuro de sua arte. São obras pessoais, recentes, produtos de uma pandemia cujo isolamento impulsionou um autoconhecimento sem volta.
“Eu pretendo viver de arte, a viagem é meu pontapé. Eu tô no início e tô vendo o que a arte tem pra me dar, as viagens estão sendo isso pra mim. A pintura me ajuda a selecionar fotos e momentos, ressalta minha passagem em cada lugar”, desabafa Daiane.
As pinturas de Daiane ficam expostas até este domingo (16) no Slow Hostel, localizado no bairro Manaíra, em João Pessoa.