Desafios são comuns nas diferentes fases da vida. Entrar na universidade marca, para muitos, a passagem da adolescência para a vida adulta e suas novas e grandes responsabilidades. De toda forma, independentemente da idade ou qualquer outro marcador social, é preciso estar emocionalmente bem para encarar o novo e todo o resto que surge com ele. Pensando em oferecer acolhimento em momentos assim, o curso de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) criou a disciplina “Ciência da Felicidade”, a primeira com essa proposta em instituições de ensino superior da Paraíba. O objetivo é promover o bem-estar dos alunos e proporcionar um bom desempenho acadêmico para eles.
“Engenharia não é um curso fácil. A nossa preocupação é com o desempenho dos alunos que podem estar enfrentando problemas ou até mesmo pressão em casa. Essa disciplina foi criada por causa de dois motivos principais. O primeiro é auxiliar no desenvolvimento emocional e bem-estar para que os alunos possam conciliar os estudos, a vida social e todas as outras questões da vida. O segundo é, a partir do primeiro, evitar a evasão na universidade, especialmente nos cursos de engenharia”, explicou o professor Carlos Thiago Cunha, que estruturou o novo componente curricular.
Para a psicopedagogia, a proposta do componente curricular faz todo sentido e pode potencializar o processo de aprendizagem de modo mais significativo.
“O aluno a partir do momento que vai fazer essa reflexão, ele vai se sentir mais pertencente ao curso. Essa questão emocional influencia porque é o centro de tudo. Pra você aprender, você precisar estar bem pra acomodar esse conhecimento. Se não for assim, não vai estar aprendendo, mas só recebendo informação”, explicou a psicopedadoga Marcela Borges.
O professor também reconheceu a pandemia como um fator que agravou ainda mais a saúde mental dos alunos, o que provocou evasão no curso. Por causa disso, segundo ele, muitos alunos deixaram a universidade.
A observação dele é reflexo de uma estatística nacional. Em 2020, primeiro ano de pandemia, 18,8% dos estudantes de universidades públicas do Brasil não conseguiram concluir a graduação. Os dados são do Censo da Educação Superior, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Especialistas na área de educação apontam que essa redução de formandos pode ser justificada com o atraso no ano letivo de algumas instituições, provocado pela necessidade de isolamento social.
“À medida que o tempo passa, os alunos se sentem mais desmotivados. A gente viu que era algo emergencial. E definimos os detalhes pra criar a disciplina”, recordou.
O conteúdo – cujo diferencial é a relação com a engenharia de materiais – não foi escolhido do dia para a noite, mas ao longo de dois anos.
Primeiro, a proposta precisou passar por um núcleo docente estruturante. Depois, teve o ementário, metodologia e plano de curso construídos. Tudo foi submetido uma análise, antes da aprovação, por meio do colegiado de curso e assembleia na universidade.
Para que tudo isso fosse possível, o professor universitário fez cursos livres dentro da questão do bem-estar e especializações na área de neurociência.
A disciplina, que vai ser oferecida a partir do semestre 2022.1 – com início previsto para o fim de setembro ou começo de outubro -, está estruturada e dividida em três eixos principais:
Parte 1 – O aluno aprende conceitos científicos relacionados com a felicidade, seguindo uma proposta de autoconhecimento.
Parte 2 – A discussão das temáticas é aprofundada por meio da prática das definições aprendidas, a partir da abordagem da ciência dos materiais na felicidade.
Parte 3 – Analisar como a felicidade vai interferir diretamente no contexto de vida dos estudantes, desde o desenvolvimento acadêmico e profissional, até o contexto fora da universidade.
Ensinamento da ‘Ciência da Felicidade’ deve ultrapassar muros da universidade
Uma das principais intenções da “Ciência da Felicidade”, na UFCG, é fugir das linhas mais tradicionais de outras disciplinas e também do processo de ensino e aprendizagem, em que o professor assume a função de tutor e o estudante de a posição de receptor.
“O objetivo é tornar o aluno protagonista disso e eu o facilitador. Colocar as provocações e o aluno desenvolver a temática”, explicou o professor.
Dessa forma, o professor Carlos Thiago acredita que a partir do autoconhecimento, a proposta pode possibilitar que os alunos despertem habilidades e desenvolver competências, a exemplo da capacidade de gerenciar as próprias emoções e também do senso coletivo.
“É uma disciplina que o aluno vai pegar essa proposta e ultrapassar os muros da universidade”, ressaltou.
A disciplina dá os primeiros passos com a analogia dentro do universo da engenharia de materiais, mas não vai ficar restrita a esse mundo, e deve ser ampliada para os outros cursos da instituição.
Harvard, Yale e UnB: instituições pioneiras e inspirações para mundo e Brasil
A Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira instituição pública de ensino superior do Brasil a abordar a temática da felicidade como tema central em uma disciplina. A iniciativa foi efetivada no ano de 2018.
Na capital brasileira, o componente curricular se inspirou nas universidades de Harvard e Yale, ambas localizadas nos Estados Unidos.
A experiência pioneira no Brasil se tornou uma referência para a instituição de Campina Grande. O primeiro passo foi entrar em contato com professores da UnBS. Depois que o professor Carlos Thiago como era a dinâmica, se perguntou rapidamente:
“Por que não adotar aqui (na UFCG)?”.
No caso da UFCG, a perspectiva da matéria é um pouco diferente das demais.
“Muitos termos usados na área da saúde, principalmente da psicologia, sã termos da engenharia de materiais, como resiliência, resistência e estresse. Vamos abordar a felicidade fazendo analogia. Os alunos vão trabalhar a temática dentro de um universo confortável, que já conhecem”, explicou.
Contudo, a disciplina também deve ser oferecida para os demais cursos no futuro. Ainda não se sabe, no entanto, como ela será adaptada.
Práticas pedagógicas podem promover avanço na saúde emocional
Para a psicopedagoga Marcela Borges, a criação de um componente curricular que trabalhe com reflexões emocionais já representa um grande avanço para o desenvolvimento dos estudantes. Principalmente, quando esse tipo de prática extrapola os muros do ambiente estudantil.
Por outro lado, ela acredita outra virada de chave importante pode acontecer a partir da revisão da relação entre professor e aluno, especialmente no ensino superior.
“Faz toda diferença ter um olhar diferenciado e sensível pra o seu aluno, o acolhendo como ser humano, entendendo as suas limitações e vendo as suas potencialidades”, justificou Marcela, que também é professora.
De acordo com ela, as instituições precisam investir em programas que atuem na sensibilização dos professores.
“O professor não é bom quando o aluno tira nota baixa, mas quando ele aprende. Saber o nome do aluno, isso é ter um olhar afetivo com todo respeito”, concluiu.