“A gente fica triste porque a cidade precisa (...) A creche que tem é muito pequena. Se hoje estivesse funcionando, a cidade estava ganhando”. O desabafo é da dona de casa Fabiana Vieira, que mora em Araçagi, a 83 km de João Pessoa. A casa dela fica ao lado da obra de uma creche que começou, em 2011, mas não saiu do papel.
Quando tudo parou, em 2013, estava praticamente pronta. Com portas, vidros, janelas, mas nenhuma criança da cidade desfrutou do espaço para pelo menos 150 delas. São salas planejadas, pátio para brincar, tudo perfeitamente adaptado. Virou uma obra fantasma.
O investimento foi de mais de R$ 1 milhão, mas, com quase 95% da obra pronta, foram identificados erros de execução do projeto e irregularidades na aplicação dos recursos.
A creche em Araçagi é uma das 15 construções, de 10 cidades, que visitamos para a Série Obras Inacabadas. Em quatro reportagens, encontramos paralisações e demora, no Brejo, Sertão e Cariri. Algumas, de saúde, esporte, habitação, são esperadas há mais de uma década.
No caso dessa, em Araçagi, uma ação na Justiça pede a devolução do dinheiro gasto na unidade escolar infantil e a condenação do gestor da época, por improbidade.
A gestão atual dá a estrutura como perdida e diz que vai superar o déficit de vagas, após concluir as obras de outras duas creches.
Neto Pessoa, funcionário público e frequentador do bairro, lembra que aos poucos a obra foi sendo saqueada. Ele lamenta que adolescentes de hoje, quando crianças, não frequentaram a escola. “Não aproveitaram, nem chegaram a estudar”.
Em contato com o Conversa Política, o ex-prefeito de Araçagi, Onildo Câmara, afirmou que, em 2012, deixou a creche 95% pronta, mas não sabe porque os gestores que o sucederam não concluíram.
Guarabira
Na nossa viagem em busca de obras inacabadas da Educação, também desembarcamos em Guarabira. Há pelo menos quatro anos, os moradores do bairro Alto da Boa Vista aguardam a conclusão de uma creche que deve beneficiar cerca de 190 crianças. O investimento inicial passou de R$ 1 milhão.
Mas, por enquanto, só existem paredes e uma estrutura de alumínio que foi colocada para sustentar a cobertura no teto. A agricultora Maria Aparecida disse que estava grávida quando a obra começou. “A menina vai fazer 7 anos e a essa creche não sai (...) ela vai casar e essa creche não sai”, desabafa, indignada.
E completa: “é um sonho de uma mãe, bem pertinho de casa. Porque a gente quer trabalhar, a gente quer não, a gente trabalha. Tem que pagar uma pessoa para tomar conta das crianças (...) minha mãe não mora aqui, então tem que pagar um pessoa”.
Sem a creche pronta na rua de casa, as filhas da aposentada Maria José recorreram à ela para poder trabalhar. “Eu sou a avó que cuida de todo mundo (...) eu estou esperando pra colocar meus meninos na creche e não termina", explicou.
Já Wellington da Silva, autônomo, ainda espera colocar os filhos, um casal de gêmeos de 3 anos, na unidade. “Para mim, como pai de família, minha esposa, muitas mães de família que precisam trabalhar para deixar com alguém responsável. A gente, às vezes, tem condições de pagar. Mas tem gente que não tem condições e a gente fica correndo risco com a criança em casa .. e a creche aqui seria uma solução”, argumentou.
O que disse a prefeitura
O prefeito de Guarabira, Marcos Diogo, afirmou ao Conversa Política que a construção da creche começou numa gestão anterior, em 2014. E parou por falta de recursos do governo federal. Marcos Diogo disse ainda que já pediu autorização para concluir a obra com recursos próprios, mas o pedido foi negado. Agora, espera solução federal.
Neste link, confira documento com a resposta do governo federal ao pedido do prefeito de Guarabira para assumir a obra.
Catingueira
Na passagem pela Paraíba, em maio, o ministro da Educação, Camilo Santana, autorizou a retomada 44 obras de educação infantil paradas e 20 escolas de ensino fundamental. Entre elas, a de Guarabira.
As prefeituras, nessa situação, precisam se mobilizar para pedir apoio do governo federal para conclusão e, se necessário, destravamento de obstáculos judiciais, como acontece em Catingueira, a 380 quilômetros de João Pessoa.
A cidade convive com a negligência da gestão pública. Há quase 15 anos uma creche começou a ser feita. As salas de aula da unidade ficam atrás do Complexo escolar mais importante da cidade.
De longe, dá para ver que o dinheiro público foi abandonado. O nosso dinheiro entregue ao tempo. Em 2009, uma auditoria comprovou que foram pagos R$ 700 mil para construção, quase todo o valor. Mas não há 30% de execução. O ex-prefeito, Edvan Félix, responde na Justiça pelo descaso.
Não conseguimos falar com a defesa dele para comentar o caso. A gestão atual afirmou que só vai recomeçar a obra após garantia de recurso do governo federal e liberação da Justiça, o que não aconteceu ainda.
Vagas sobrando
Apesar da situção, a Secretária de Educação se orgulha: sobram vagas no ensino infantil.
Na cidade, há uma creche para crianças de 6 meses a 2 anos e uma pré-escola de 03 a 05. Não faltam vagas. "A gente tem feito buscas ativas para que os pais venham matricular os alunos. Temos uma creche que 100 alunos estão matriculados e estamos construindo outra. A pré-escola funciona no complexo. 120 alunos de quatro e cinco anos. A creche nova é para ter mais vaga de zero a três anos”, explicou Amanda Lustosa.
A professora Alessandra Souto conhece bem o ‘b-a-bá’ da educação infantil e seus resultados.
A criança chega cedo na escola. A importância é a convivência para ela ir se socializando, alfabetizada, ela vai ter um processo. Mas a base é o primeiro contato (...) "É a coordenação motora, é o ato de pintar de cortar, pegar de ameaçar é isso que precisa no começo da escolaridade. É todo um processo lá na frente é que ele vai apreender a letrinha".
Mães e pais atestam todos os benefícios. O cozinheiro Alexandre Claudino se tranquiliza. "Trabalhar com a cabeça tranquila sabendo que minha filha ta protegida, na escola."
Sumara Clemente também faz o mesmo relato. "Vão (as crianças) ficar tranquila e eu sei que vão ficar seguros e também estão interagindo com outras crianças, tão em desenvolvimento.
Condado
Em Condado, a 350 km de João Pessoa, um outro exemplo de frustração pública com prejuízo coletivo. Com certeza, pais de crianças de 0 a 5 anos que souberam que iriam construir uma creche padrão em um dos bairros da cidade, à época, empolgaram-se.
Muitos viram as paredes subirem e o telhado ser colocado, mas muitos viram as paredes caírem, a destruição e o dinheiro público ser jogado fora. Por ironia, o bairro se chama o conjunto da creche. Uma creche que nunca chegou a existir.
Seu Francisco Arnaldo, que hoje é entregador, trabalhou na construção. “Eu trabalhei nessa obra. Uns 3 anos e 6 meses. Do começo até o ponto que está. Fico triste, indignado. Um projeto tão bonito (...) batalhei, enchi a mão de calo e nada da obra terminar...ficou quase pronto (...) faltavam apenas os detalhes. Tinha telhado completo, tava terminando piso de granito”.
Dona Maria Helena, que mora a alguns metro da creche também lamenta. “Tristeza porque tem muita criança que tem mãe que pode trabalhar, mas as crianças não têm para onde ir (...) não tem onde deixar as crianças”.
A pequena Eduarda, de 3 anos, entrou na pré-escola recentemente e, até os dois anos, ficou com a avó , para a mãe, Maria da Conceição, trabalhar. “Tem muita mãe que reclama que não tem creche. Nas outras cidades têm (...) tem que pagar, se não for da família. Porque ninguém vai ficar de graça”.
Dona Geralda Inês, mãe de Maria da Conceição não se importa em ser o apoio para as netas, mas sabe que na escola seria diferente. “Fico com tudinho dentro de casa. Fica tudo mais eu... se não ficar mais eu, ninguém trabalha”.
Glenda Dantas, professora do curso de Gestão Pública da UFPB, destaca que o prejuízo não é apenas temporal.
A demora para finalização também traz um conjunto de outros prejuízos, além do financeiro. Quanto mais demora a construir mais cara, quem paga somos todos nós. O que viabiliza essas obras são os impostos. Independente se são recursos do municípios, ou de transferência. Entendemos que a população vai pagar”, afirmou ao Conversa Política.
Investigação do MPF
De acordo com o Procurador do MPF, Tiago Misael, que atua no Sertão, na região de Patos, a creche em Condado é uma investigação que existe, na Procuradoria, e se insere dentro de um conjunto maior de investigações sobre não execução de programa federal, Pró-Infância.
"Não é só em Condado. Tem um conjunto enorme de cidades que tem creches não executadas em um mesmo procedimento aqui na procuradoria de Patos".
Segundo ele, há punições ao gestores. "Sempre aqueles que causam dano ao erário, ele será responsabilizado, seja no âmbito criminal, seja de enriquecimento ilícito, por improbidade administrativa", afirmou.
A série
Em quatro reportagens,visitamos obras inacabadas no Brejo, Sertão e Cariri. Algumas, são esperadas há mais de uma década. Além dessas creches, quase prontas que nunca receberam uma criança, a séria traz também postos de saúde que não saíram do papel, vilas olímpicas sem quadra, sem piscinas ou pistas de atletismo. Um conjunto habitacional entregue ao tempo.
A população de algumas cidades ainda espera a conclusão de um teatro, mercado público, matadouro e sistema de irrigação com águas da transposição do Rio São Francisco.
Moradores relataram os prejuízos causados pela falta de conclusão das obras; especialistas comentam sobre o desperdício do dinheiro público em projetos com erros de planejamento e executados.
As punições previstas para gestores e gestões. E, ainda, as soluções e prazos previstos para que a população tenha acesso aos benefícios que podem chegar com a conclusão dessas obras.
Colaboração: Larissa Maia
Imagens: Beto Silva, Alessandro Manaro e Lucas Edições