Dia de Iemanjá: quem embranqueceu a rainha do mar?

Especialistas discutem o que causou o processo de embranquecimento da divindade e a importância de reivindicar seus traços negros.

Especialistas e ativistas questionam processo de embranquecimento de Iemanjá.

Dia 2 de fevereiro, Dia de Iemanjá, é lembrado em diversas canções da música brasileira. Desde Dorival Caymmi e seu desejo de ser um dos primeiros a celebrar a orixá, até obras mais recentes, como a música ‘Baiana’, do paulista Emicida. O rapper cantou em 2015 “dois de fevereiro, dia da rainha, que pra uns é branca, pra nós é pretinha”. Esse marcador racial vem como um questionamento, de onde vem o processo de embranquecimento da uma entidade africana?

Entre as muitas datas separadas para reverenciar a rainha do mar, o 2 de fevereiro é a que reúne a maior quantidade de celebrações pelo país. Considerada por muitos integrantes de religiões de matriz africana como ‘A mãe africana do Brasil’, Iemanjá é considerada a mãe de todos os outros orixás, além de protetora do mar, da pesca, guerreira e amante dos mitos. A força materna é amplamente reverberada pelos que pertencem à fé. 

De acordo com o pesquisador Antonio Baruty, no Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (Neabi) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Iemanjá é uma orixá que chegou ao Brasil por meio dos povos iorubás, que são originários da Nigéria, Benim, Gana, Togo e Costa do Marfim. Eles vieram do continente africano a partir do século 18, trazidos de maneira forçada pelo tráfico atlântico de escravizados. 

A celebração do 2 de fevereiro está relacionada, como tantas outras coisas, ao sincretismo religioso. Essa mescla que esteve amplamente marcada pela assimilação das religiões vindas da África deixou muitos frutos, relações que ajudam a contar a história do Brasil. Dentro do sincretismo existe uma dinâmica de equivalência, relacionando santos católicos com orixás. 

Esse processo se deu, principalmente, na imagem da Nossa Senhora. Em Salvador, o sincretismo de Iemanjá é ligado à Nossa Senhora das Candeias, celebrada em 2 de fevereiro. É por isso que a festa mais antiga em louvor a orixá no Brasil ocorre nesta data. A cerimônia encerra um ciclo de celebrações que começa em 4 de dezembro com a Festa de Iansã (sincretizada com Santa Bárbara), seguida por Oxum em 8 de dezembro (associada à Nossa Senhora Conceição). 

Na Paraíba, o 8 de dezembro comemora o Dia de Iemanjá, deixando nítido a pluralidade de interpretações diante do sincretismo. E é esse processo que se conecta ao embranquecimento das imagens de Iemanjá, conforme o pesquisador Antonio Baruty. As associações com divindades católicas interferiu na construção do entendimento coletivo de como seria Iemanjá. 

O especialista explica que essa associação surge juntamente com a Umbanda, religião filha do processo de sincretismo. Foi a partir dessa fé que Iemanjá passou a ser representada como uma mulher branca, de cabelos negros longos e lisos, usando um vestido azul claro (cor que aparece na imagem de Nossa Senhora), trazendo à cabeça um diadema com uma estrela. 

Apesar disso, nos países africanos e nos terreiros de candomblé brasileiros, onde o sincretismo não está presente, Iemanjá segue sendo representada por uma figura com formas largas e na cor negra. 

Esse marcador tem sido reivindicado por muitos integrantes do movimento negro na atualidade, por acreditar que tornar a orixá branca é o mesmo que apagar uma memória. Segundo Antonio Baruty, homem negro que carrega 40 anos de ativismo e pesquisas sobre as questões raciais, essa reivindicação está relacionada a uma exigência de respeito pelas origens da orixá:

“Sendo a origem dela no território africano, é justo e mais representativo que a cor de sua pele seja negra em respeito as mulheres e homens negros que aqui aportaram trazendo em seus corações o culto a grande Mãe. A representação branca de Iemanjá é um desrespeito a nossa ancestralidade”, defendeu o pesquisador.

No entanto, ele acredita que, apesar do processo de embranquecimento ser questionado e combatido, não é aceitável que imagens de Iemanjá, independente de sua forma, sejam quebradas e destruídas, a exemplo do que aconteceu na Praia do Cabo Branco, em João Pessoa. Episódios assim seguem sendo atos de intolerância religiosa. 

Mas afinal, orixás têm cor?

As discussões em torno da representação imagética dos orixás estão relacionadas à importância do combate ao racismo religioso e ao apagamento das heranças africanas. No entanto, em termos espirituais, os orixás não possuem cor. Essa afirmação está presente no portal do Museu Afro Brasil. De acordo com o órgão, a escravizçãp dos povos negros, regime de exploração que durou quase 400 anos no Brasil, “colocou em contato as religiões de diferentes povos africanos, que acabaram por assimilar e trocar entre si elementos semelhantes de suas culturas”. Essa relação deu origem às religiões afro-brasileiras. 

O candomblé, segundo o museu, “não é um único culto religioso, mas antes uma série de cultos estreitamente aparentados”. As divindades do candomblé levam os nomes de orixás, inquices e voduns, de acordo com o povo de origem, seja iorubá, banto ou jeje, respectivamente. No Brasil, as três formas estão presentes, mas a nomenclatura orixá é a mais popular.

Jesus Cristo é descrito no catolicismo como uma encarnação humana de Deus, isso pode confundir muita gente e achar que é existe uma só dinâmica para diferentes religiões. No entanto, Iemanjá representa no candomblé uma força da natureza, uma energia. Nesse sentido, o Museu Afro Brasil define que o orixá não teria uma cor de pele.