“Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. O filme com Emicida devia passar nas escolas

"Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro". O filme com Emicida devia passar nas escolas

Kleber Mendonça Filho, o grande cineasta pernambucano de O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau, adorou.

W.J. Solha, nosso escritor/ator/dramaturgo/pintor, prestou atenção em Kleber, viu e disse que é uma porrada.

Então, vou classificar assim: AmarElo – É Tudo Pra Ontem é um filme-porrada!

Se você ainda não sabe o que é AmarElo, procure saber.

É imprescindível.

O documentário dirigido por Fred Ouro Preto parte da gravação de um disco e da realização de um show do rapper Emicida no Theatro Municipal de São Paulo.

Parece aquilo que os americanos chamam de concert film.

Back in the U.S. – com Paul McCartney – é um concert film.

Estúdio, conversas, depoimentos, trechos de um show ao vivo.

Mas isso – concert film – é muito pouco. Não faria de AmarElo algo tão imprescindível assim.

O que temos é um filme didático, no melhor sentido da palavra, e, justamente por isso, uma necessária e indispensável aula sobre a presença dos negros e sua cultura na história do Brasil. Para passar nas escolas.

É Emicida que conta essa história, muitas vezes como narrador mesmo, voz em off, e, por outro lado, atrai para junto dele personagens que estão entre o estúdio e o palco do Municipal numa noite inesquecível, antológica.

Sim. Porque, para além da música, as pessoas que estão na plateia nunca pisaram ali, jamais pensaram que pudessem estar ali. Estão pela primeira vez, aplaudindo, cantando, chorando, afirmando que aquele lugar também lhes pertence. E testemunhando que a música de Emicida pode ser produzida no palco do Municipal. Como podia a de Clementina de Jesus, que, um dia, subiu ao palco do Municipal do Rio.

O filme tem gente importantíssima para a história dos negros do Brasil. Tem, por exemplo, Ruth de Souza, Abdias do Nascimento e Lélia Gonzales. Mas tem, sobretudo, muita gente da música.

De Pixinguinha a Emicida (e Wilson das Neves e Paulinho da Viola e Johnny Alf e Wilson Simonal com seu Tributo a Martin Luther King).

Ou: do samba dos fundadores ao rap – vou resumir assim a longa estrada.

No Brasil de 2020, AmarElo é um grande acontecimento.

Além de ser um documentário muito bem realizado, é um evento político. Como tal, se contrapõe ao que temos de pior, tanto no cenário político quanto na significativa parcela da população que optou e permanece optando pela barbárie.

Um filme assim, a despeito de tudo o que está acontecendo, nos transmite um otimismo contagiante.

Vejam que história a desses homens e mulheres. Vejam a contribuição dos negros para a música brasileira. Vejam, portanto, um documentário que compartilha essa trajetória e seus personagens com o público, dizendo que nem tudo está perdido.

É tudo pra ontem – diz o subtítulo. A luta dos negros brasileiros tem urgência.  É toda pra ontem. Como outras lutas. Como a grande luta de quem acredita num Brasil que supere a desigualdade que emperra seus avanços civilizatórios.

AmarElo fala especificamente dos negros, mas faz a gente pensar em muitas outras coisas. Inquieta, provoca, arrebata. É muito foda, como disse Kleber Mendonça Filho depois de ver o filme numa sala em que havia crianças ao seu lado.

Se você, espectador, não compreende algumas vozes do Brasil de hoje e as classifica como menores, ou não musicais, talvez o documentário de Fred Ouro Preto não lhe agrade. Mas é uma pena porque essas vozes têm grande legitimidade, independente das nossas escolhas pessoais.

O ponto alto do show no Municipal reúne Emicida, Plabllo Vittar e Majur numa impactante recriação de Sujeito de Sorte, do Belchior de meados da década de 1970.

“Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro” – diz a letra.

Mas aí vem a pandemia, que interrompe o caminho de AmarElo, a turnê de Emicida, e não permite um final apoteótico para o filme.

O documentário, então, termina assim. Com as ruas de São Paulo vazias como nunca estariam.

Assim e com o rosto de Marielle Franco.