Lugar de Fala: negros e indígenas não querem ser fantasia de carnaval,”chega de apropriação”

Que pensemos sobre folclorização e os riscos das armadilhas racistas, ainda que inconscientes.

Indígenas e negros não querem mais virar fantasias de carnaval.

O ano quase começou. A poucos dias do feriadão de carnaval, quem tem Brasil correndo nas veias acompanha, de perto ou de longe, a inebriante alegria das prévias. Marchinhas em dia, hit do verão e as ruas, como um espaço merecedor de democracia plena, pronta para receber os foliões em cada canto do país após durezas da pandemia. Mas para brincar carnaval mesmo, de um jeito ‘raiz’, tem que ter fantasia. 

Usar roupas e acessórios para trocar a identidade, ainda que por uma noite, costuma ser uma das coisas mais divertidas da principal festa popular do país. É que no carnaval “pode tudo”, acreditam muitos que foram forjados pela noção de que, nesta época, vale o desprendimento sem limites. E assim várias fantasias foram se tornando comuns, ainda que seus significados não fossem discutidos, tampouco problematizados.

É neste momento que a folclorização se une à apropriação. Que o capitalismo transforma questões identitárias em itens de consumo muitos de nós sabemos, mas vale uma reflexão mais profunda sobre como isso afeta o imaginário social construído em volta de alguns povos. Nosso diálogo de hoje é justamente para pensarmos: de que modo o carnaval, como linguagem cultural do país, reproduz violências simbólicas através de fantasias?

Se apropriar e folclorizar, uma opressão (por vezes) inconsciente 

A internet, na esteira das discussões sobre contextos sociais e realidades etnicorraciais, se tornou uma arena pública de debates intermináveis. Apesar do desgaste e da necessidade incessante de opinar sobre tudo, ou quase tudo, as redes são muito importantes para construção de saberes orgânicos, baseados em experiências reais e constantes. E são nesses espaços cibernéticos que eclodiram, há uns anos, as discussões sobre apropriação cultural. 

Antes de entender o conceito muita gente prefere listar o que pode e não pode, o que é válido quando a intenção é poupar grupos calejadas com processos de apagamento. Mas compreender o que é a apropriação cultural é a nossa principal arma de combate a este fenômeno tão comum, intrínseco aos processos de dominação. 

O escritor brasileiro Rodney William escreveu o livro cujo título é exatamente a pergunta “O que é apropriação cultural?”. O pesquisador é um homem negro, de candomblé, que lida, a vida inteira, com intolerância religiosa e outras violências que atacam sua identidade. Eu perguntei a Rodney como ele poderia resumir o que é apropriação de um modo que todos entendessem, eis a resposta:

“Muitas vezes a discussão fica restrita ao que pode e não pode, muita gente acha que é sobre negro ou indígena proibir branco de usar elementos das nossas culturas. Mas na verdade ela ocorre quando alguém do grupo dominante adota objetos ou hábitos de uma cultura subalternizada e, além de não reconhecer a origem, esvazia o sentido daquele objeto ou manifestação cultural”, explica. 

Lugar de Fala: negros e indígenas não querem ser fantasia de carnaval,"chega de apropriação"
Pai Rodney William é babalorixá, antropólogo, doutor em Ciências Sociais.

Assim, se apropriar é transformar algo que tem muito peso ancestral para determinados grupos em um mero acessório, numa mera peça de roupa ou numa prática sem significado. Esse seria o primeiro passo do processo de apropriação, mas aqui abro espaço para entendermos como essa apropriação pode caminhar ainda para uma folclorização. 

Se apropriar por si só seria a etapa do uso de um turbante ou de um determinado trançado de cabelo, por pessoas brancas, sem reconhecer ou buscar compreender que peso histórico isso tem para mulheres negras. Podemos refletir, por exemplo, porque homens brancos de dreadlocks são considerados estilosos, e homens pretos são considerados “sujos e maconheiros”? 

Ultrapassando a etapa da apropriação estética, depois do esvaziamento pode vir a folclorização, que é mais uma forma de apagar o significado ancestral de um hábito, mas pode ir além. É quando aquele comportamento ou costume cultivado por povos minorizados é transformado em piada, num espetáculo mesquinho para inflar o ego do grupo dominante. Aqui entra o carnaval e as fantasias desrespeitosas. 

Etnia não é fantasia 

Quem nunca viu, num bloco qualquer, alguém “fantasiado” de indígena? Um cocar gigante, pinturas no rosto, saias em alusão ao artesanato e gestos, gritos e danças que falam mais sobre a criação do estereótipo do que sobre qualquer povo em específico. Primeiro ponto, não há como decidir se “fantasiar” de indígena porque ser indígena é ocupar um lugar social. Não é um personagem, não é um herói, um vilão.

Os povos originários são plurais e heterogêneos o suficiente para que nenhuma roupa, adereço ou imitação de comportamento dê conta de todas as possibilidades do que são os indígenas brasileiros. Outro ponto importante é que, entendendo o contexto de esvaziamento de sentido e transformação de uma cultura em piada (através da imitação de danças e sons), fica nítido que a tentativa de se fantasiar de indígena nada mais é que uma apropriação escancarada, atrelada a folclorização repetida desses povos. 

indigenas folclorização
Indígenas não enxergam fanstasias de carnaval como homenagem.

Cristina Potiguara é uma mulher indígena da Paraíba, que trabalha como guia turístico e é apaixonada por conhecer lugares e pessoas. Cristina, há tempos, se questiona de onde surgiu o fetiche branco por se “vestir” de indígena e sair carnavalizando corpos como o dela. 

“Chega de apropriação, nos transformar em fantasia nos prejudica muito. Qualquer uso de vestimenta traz significados, e para nós nossos trajes e pertences carregam significado, são instrumentos de ancestralidade, força e proteção. Quando alguém usa no carnaval, sem dimensão de como os adornos são especiais para nossos povos, nos ferem moral e politicamente. Principalmente pela situação difícil que sempre passamos no Brasil e muita gente nunca buscou entender nossa realidade”, defende Cristina Potiguara. 

Uma outra prática historicamente comum no carnaval brasileiro é a fantasia de ‘nega maluca’. A criação de uma estética que remeta ao cômico já é problemática por si só, entra no desrespeito de fazer chacota de um povo cuja história conta as dores e inúmeros tipos de tentativas de genocidio. 

A peruca que imita o black power, a tinta preta espalhada no rosto e tecidos escuros cobrindo a pele por completo. Roupas coloridas e batom vermelho são o arremate de uma identidade levada ao escárnio em plena folia. A representação da mulher preta como descontrolada ou escandalosa foi utilizada, por séculos, para reproduzir as estratégias de dominação. O passado que abriu alas para que isso se tornasse fantasia de carnaval já é, por si só, nefasto e desrespeitoso. 

Além disso, esta fantasia utiliza uma tática racista muito antiga, o blackface. Pessoas brancas pintando a pele de preto para representar pessoas negras é algo que existe desde antes dos primeiros momentos do cinema. A imagética vinha atrelada a imitação de comportamentos problemáticos, onde homens negros eram representados como violentos e selvagens, e mulheres pretas como descontroladas sexualmente. 

Na década de 1820, nos Estados Unidos, Thomas D. Rice criou o personagem “Jim Crow”, que se pintava de negro com carvão e fazia sátiras racistas sobre os afro-americanos. Naquela época, as atrações racistas no teatro ficaram populares e contribuíram para a proliferação de estereótipos. O blackface se perpetuou como um modo vexatório de representar pessoas negras, mas não se limitou aos EUA e consegue, até hoje, continuar fazendo estragos através do carnaval brasileiro. 

Lugar de Fala: negros e indígenas não querem ser fantasia de carnaval,"chega de apropriação"
Retrato publicitário do ator de teatro americano e comediante de Vaudeville Bert Williams, 1915. (Foto de John D. Kisch/Separate Cinema Archive)

Carlos Correia é um jovem negro, estudante de Relações Internacionais na UFPB e membro do Fórum da Juventude Negra da Paraíba. O blackface para ele é um dos principais exemplos de como o racismo desumaniza pessoas pretas. 

“Quando o blackface surgiu, além da questão estética, a prática associava os homens negros a estupradores, preguiçosos e bêbados. Surgiu como uma resposta à luta por direitos civis. O blackface não nos representa, somos diversos, altos, baixos, de lábios grandes e pequenos. Essas imitações não nos representam, apenas nos desumanizam. Blackface é racismo, não somos fantasia”, conclui Carlos. 

Entendendo nosso passado, enxergando as dores que ainda se perpetuam e a luta por liberdade e valorização das populações negras e indígenas do Brasil, não dá para achar que está tudo bem usar essas experiências humanas e sociais como fantasia. Existem inúmeras opções de fantasias criativas que não reproduzem violência. 

E sobre a prerrogativa de homenagem, que muita gente utiliza, existem inúmeras formas de homenagear estes povos, conhecer a realidade deles e compreender mais sobre apropriação é um grande primeiro passo.