Há exatos cem anos nascia Billie Holiday, a voz definitiva do jazz

Cantora de voz sublime e vida sofrida que definiria o modo de cantar do século 20 fez sua história na música mundial.

Há exatos cem anos nascia Billie Holiday, a voz definitiva do jazzGrávida, Sadie Fagan fez um trato no hospital: lavaria o chão e cuidaria de outras gestantes em troca de assistência médica para ela e o bebê que carregava no ventre. Ela tinha 13 anos quando, em Baltimore (EUA), no dia 7 de abril de 1915, trouxe ao mundo Eleanora Fagan, a gata borralheira que se tornaria a rainha do jazz Billie Holiday.

É assim que a cantora lembra de seu nascimento, como registrado na autobiografia Lady Sings The Blues (editada no Brasil pela Zahar). Mas os historiadores contestam: Sadie, na verdade, tinha 19 anos e havia sido expulsa da casa dos pais (em Baltimore), vindo a dar a luz na Filadélfia.

Como muitos artistas de sua geração, as lembranças de Billie Holiday não eram tão precisas, mas da vida sofrida ela lembrava com nitidez. Abusada sexualmente ainda na adolescência, tornou-se prostituta e cumpriu pena na prisão. Tudo isso antes de completar 18 anos. De bar em bar, foi afinando sua voz e seu canto.“Billie ‘miava’ de forma sublime”, sentenciou o critico francês Stéphane Koechilin no livro Jazz Ladies – A História de Uma Luta (Editora Nacional).

Confira cinco músicas que atestam a supremacia da diva Billie Holiday.

O canto na música popular se divide entre antes e depois de Billie Holiday: os maneirismos, as impostações e inflexões de determinadas palavras foram algumas novidades que a cantora inseriu nos palcos naquela primeira metade do século 20. A intensidade com que cantava também fez a fama de Lady Day – apelido que ganhou do amigo Lester Young, saxofonista com quem faria algumas de suas mais famosas gravações. 

Criou sua técnica baseada em seus ídolos: Bessie Smith e Louis Armstrong (com quem dividiria as telas em New Orleans, de 1947). “Sempre quis ter o som encorpado de Bessie e o sentimento de Pop (Louis Armstrong)”, confidenciou Billie Holiday em seu livro.

Em pouco mais de 25 anos de carreira, Lady Day gravou discos para selos do prestígio da Columbia (de 1933 a 1942), Commodore (de 1939 a 1944), Decca (1944 a 1950) e a Verve (1952-1957). Deixou registrado interpretações soberbas para ‘Me, myself and I’, ‘Embraceable You’, ‘Don’t explain’, ‘God bless the child’ e ‘Autumn in New York’, mas nenhuma comparável a ‘Strange fruit’, arrebatadora canção sobre o racismo rejeitada covardemente pela Columbia e gravada pela engajada Comodore em 1939.

Em principio, Billie não entendera direito o poema que dera origem à canção, mas ao compreendê-lo, ela imprimiria em cada palavra uma intepretação capaz de derrubar toda a plantação dessas “frutas estranhas”. “‘Strange fruit’ quebrava um tabu em uma sociedade na qual a expressão ‘canção de protesto’ ainda não havia surgido”, anotou Koechilin.

Entre a glória e a humilhação, entre o céu do estrelato e o inferno do álcool e das drogas, entre os holofotes do palco e as surras que levava dos maridos dentro de casa, Billie Holiday viveu cantando a história da própria vida. Morreu em 17 de julho de 1959, com a saúde extremamente fragilizada, mas sem abrir mão do vício. Reza a lenda que, entre suas últimas internações, ela chegou a receber voz de prisão e ser algemada na cama. O epílogo triste de uma vida trágica.

Quatro títulos para conhecer bem Billie Holiday

Lady Day: The Complete Billie Holiday on Columbia – 1933-1944
Para muitos fãs e críticos, as gravações que Billie Holiday fez para a Columbia em pouco mais de dez anos são as melhores, já que trazem a cantora no auge de seu alcance vocal. Esta coleção de dez CDs, lançada em 2011, reúne 230 fonogramas (muitas delas também presentes na série ‘Quintessential’). Entre elas estão as primeiras gravações da cantora, acompanhada por Benny Goodman e sua orquestra, até os registros que ela gravou ao lado do amigo-irmão Lester Young.

The Complete Decca Recordings
Lançado em 1991, luxuoso estojo duplo reúne 50 gravações feitas por Lady Day no período em que esteve sob contrato da Decca. Foi lá, ainda nos anos 1940, que ela experimentou pela primeira vez gravar com acompanhamento de orquestra. A caixa é brindada com takes alternativos de clássicos como ‘Don’t explain’ e ‘Solitude’, além de trazer épicos como ‘Good morning, heartache’, ‘No good man’ e ‘Lover man’ – um dos singles mais comercializados da cantora – e ainda conter regravações de alguns dos clássicos emplacados por Billie Holiday em anos anteriores, como ‘Them there eyes’ e ‘God bless the child’.

the complete billiE holiday in verve – 1945 1959
Caixa com dez CDs cobre as gravações que a cantora fez na Verve – o último lote da carreira dela. O repertório parte dos registros que Billie Holiday fez com a orquestra Jazz At The Philarmonic, de Norman Granz, até o reencontro dela com Ray Ellis em 1959 (no ano anterior eles fizeram o famoso ‘Lady in Satin’ – ver texto ao lado) e que daria origem ao póstumo ‘Last Recording’. Além de uma constelação de astros do jazz que fizeram história ao lado de Lady Day nos anos 50, a caixa traz um descontraído ensaio na casa do baixista Artie Shapiro que mostra a cantora na intimidade.

Lady in Satin
De volta à Columbia, Billie Holiday foi convidada a gravar um suntuoso álbum de cordas, com arranjo e regência de Ray Ellis. O maestro tinha fama de metódico e gravava com uma precisão milimétrica. Já Lady Day, cuja voz andava gasta pelos excessos de drogas e álcool, não tinha paciência para se submeter a um esquema rigoroso de produção. Para piorar, esquecia as letras ou nem tinha o menor interesse em aprendê-las. Mesmo nesse ambiente tenebroso, ela gravou 12 faixas soberbas, entre elas ‘I’m a fool to want you’. Os fãs defendem o disco de 1958 com a capacidade cada vez profunda de expressar seus sentimentos.