‘Nosso único recurso é gente’, diz Valéria Rezende no Mulherio das Letras Sertão

Mulherio das Letras aconteceu pela primeira vez no sertão da Paraíba.

Maria Valéria Rezende no Mulherio das Letras do Sertão. Foto: Lucas Japhet

“Vocês não precisam mais de mim”, disse a escritora Maria Valéria Rezende em sua fala de abertura no Mulherio das Letras do Sertão. Negando ser ‘a musa do mulherio’, a escritora fez referência às mulheres artistas ali presentes, afirmando que elas estão dando continuidade “e muito bem” à produção literária, bem como aos eventos de protesto e de caráter reivindicatório, como é o caso do Mulherio das Letras. 

“A finalidade de eventos como esse é não precisarem mais existir”, destacou Valéria, que enxerga a importância desses espaços, ditos como ‘apenas para arte feminina’, no enfrentamento das opressões sociais. Em meio às dificuldades de estrutura para que o evento ocorresse no sertão e diante de um casarão lotado de pessoas,  Maria Valéria Rezende lembrou do mais importante: “nosso único recurso é gente!”

Para organizar um evento desse, o que precisa é gente. Nosso único recurso é gente. Não somos minorias, somos uma maioria minorizada. Temos que sonhar, acreditar que a gente junto tem força. Nós temos sabedoria”, disse Valéria Rezende.

Em sua fala, Valéria também incentivou a criação de novos projetos artísticos independentes. “A única coisa indispensável é o sonho”, frase essa que motivou uma mulher a levantar-se para dizer que dali em diante faria exposições de suas fotografias e, assim,  assumiria sua arte enfrentando seus medos. Aliás, nada foi mais debatido no Mulherio Sertão do que o medo que as diversas mulheres enfrentam para assumir seu próprio trabalho. 

Com Violeta Formiga como poeta homenageada, o evento debateu o feminicídio na região do Sertão. Para além dessa violência letal e objetiva, há também a violência simbólica e subjetiva que, muitas vezes, não é vista a olhos nus –  não à toa diversas autoras destacaram em sua fala a falta de incentivo e oportunidades, bem como o receio de ser julgadas por optarem assumir sua arte.

A gente nasce equipado para viver mil vidas diferentes, mas a vida e suas encruzilhadas fazem a gente escolher um caminho. A Literatura faz a gente viver outra vida”.

Sobre sua própria trajetória, Valéria relembrou como se tornou leitora e, em seguida, escritora. Nascida 15 anos antes da TV no Brasil, ela costumava se reunir com a família apenas para ler: “era a gente mesmo o nosso próprio lazer”. Já quanto à profissão de escritora, Valéria afirma que no país, o escritor(a) é como “cozinheiro de restaurante de luxo que não recebe salário”.

Nesse ofício há muitos anos e já bastante reconhecida nacionalmente, a escritora destacou que “a gente não pode escrever para ganhar prêmio. A arte tem que ser em si uma recompensa”. Como exercício para imaginar uma outra realidade possível, Valéria propôs a reflexão: “imaginem viver como um ser humano pleno de talentos e não como fonte de mais valia”.

A gente não pode se acomodar achando que já alcançamos nossos direitos políticos. O preço é a eterna vigência”.

Ao encerrar sua fala, mas entendendo que esse diálogo sobre luta política e literatura é dinâmico, orgânico e histórico, Valéria Rezende fez questão de dizer que “essa nossa conversa não tem fim, vai continuar pra sempre”. Pois o preço é a eterna vigilância. Mesmo quando há avanços, não pode haver esgotamento da luta na construção da liberdade e de um outro mundo possível.

Sobre o Mulherio Sertão

Mulherio das Letras Sertão
A antologia “Ritos e Versos Para o Fim do Mundo” reúne textos de autoria feminina sertaneja. Foto: Lucas Japhet

O Mulherio das Letras aconteceu pela primeira vez no sertão da Paraíba. Com uma programação intensa para três dias de evento, foram realizadas oficinas nas escolas, palestras, mesas redondas, saraus, lançamento e venda de livros, feira artesanal e apresentações musicais. Teve início na quarta-feira (20) à noite, com a palestra “O Sertão é o reinado do Mulherio”, da escritora Maria Valéria Rezende. Já o encerramento aconteceu nesta sexta-feira (22) com o show da cantora Karolaine Silva, no Leblon, ao lado do Açude Grande.

Produzido por Lua Lacerda, Mirian Oliveira, Tainara Silva e Veruza Guedes, o evento organizou uma antologia chamada “versos e ritos para o fim do mundo”, que reúne textos de poetas, contistas e cronistas nascidas ou radicadas no sertão paraibano. O livro pode ser adquirido através da editora Arribaçã.

Violeta Formiga foi a escritora homenageada do evento. A poeta pombalense Violeta Formiga teve sua poesia brutalmente interrompida aos 31 anos de idade quando foi vítima de feminicídio pelo seu companheiro. O evento selecionou Violeta não apenas por ser uma mulher sertaneja, mas para reivindicar a vida das mulheres como condição mínima para desenvolver sua arte e produzir livremente.