Eu também sou a Plastic Ono Band, como picharam no muro. E você?

“Mãe, você me teve,

mas eu nunca tive você.

Pai, você me deixou,

mas eu nunca deixei você.”

John Lennon/Mother

Eu também sou a Plastic Ono Band, como picharam no muro. E você?

A capa original do disco é essa. Uma mulher (Yoko Ono) sentada, encostada numa árvore, com um homem (John Lennon) deitado sobre ela. John Lennon/Plastic Ono Band, lançado em 11 de dezembro de 1970. Quando esse álbum chegou por aqui, fundiu as nossas cucas. De verdade.

“Tenho vergonha das coisas que passei,

tenho vergonha da pessoa que sou.”

John Lennon/Isolation

Para mim, John Lennon/Plastic Ono Band é o melhor de todos os discos feitos pelos ex-beatles. Os soberbos All Things Must Pass, de George Harrison, e Band on The Run, de Paul McCartney, são inferiores.

O álbum de Lennon é também um dos grandes discos do rock. De todo o rock. E um dos mais verdadeiros. Sim. Porque desnuda completamente o artista e suas dores.

Foi feito como resultado da terapia do grito primal (the primal scream) proposta ao casal Lennon pelo psicoterapeuta americano Arthur Janov, que morreu em 2017 aos 93 anos. O paciente reconhece suas neuroses através do grito, que aparece em duas faixas (Mother e Well, Well, Well). Antes de Mother, a primeira canção, há um sino lúgubre que toca algumas vezes.

Tudo é de uma crueza singular. Tudo é mínimo. Ou tudo diz o máximo com o mínimo. Tem um piano aqui, outro acolá, mas os sons secos e sintéticos vêm de um power trio (Lennon nas guitarras, Klaus Voorman no baixo, Ringo Starr na bateria).

“Conversamos sobre a liberação feminina

e como diabo poderíamos resolver as coisas.”

John Lennon/Well, Well, Well 

Sexo, política, drogas, religião, idolatria, solidão, amor, lembranças – os temas vão se sucedendo em canções simples e belas. Às vezes, desesperadas. No final, antes de uma quase vinheta (“Minha mãe morreu”), há God“Deus é um conceito através do qual medimos nossa dor” – diz o primeiro verso.

Segue uma lista de negações do músico. Ele não acredita mais nos símbolos religiosos, nos políticos, nem mesmo nos Beatles. Jesus, Buda, Kennedy, os reis, Elvis, Dylan. Todos estão fora das suas crenças. Aí vem a frase de uma geração: “The dream is over”. “O sonho acabou. O que é que eu posso fazer?”.

Em outubro de 2020, na data em que John Lennon faria 80 anos, perguntei a Gilberto Gil sobre as lembranças que ele tinha do disco John Lennon/Plastic Ono Band. Na época do lançamento, Gil estava exilado em Londres. Assim ele me respondeu:

“O que permanece daquele momento, ainda que já meio esmaecido pelo tempo, é o sentimento de um certo esgotamento de toda aquela experiência audaciosa e libertária que vivemos na época. Eu, pessoalmente, muito interessado que estivera em tudo aquilo que nos associava ao traço expansivo da mentalidade hippie tão bem representada pelos jovens do rock’n roll, tomei uma sacudidela com aquele disco do Lennon. Aquelas canções mais de desistência que de resistência me sugeriam cansaço; fim de uma viagem extenuante; esgotamento de um entusiasmo juvenil que a rebeldia havia alimentado em nós, entusiasmo a que agora era preciso renunciar. 

O sonho acabou era a canção-emblema daquele disco que apontava para a necessidade de uma versão amadurecida do nosso desejo. Ao tempo em que nos convidava a mergulhos mais profundos nas águas escuras do ser. Canções como Mother ou God me remetiam a territórios mais densos como os da yoga ou da psicanálise. Enfim, havia ali, naquilo tudo, um convite ao despertar”.

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Ouvir John Lennon/Plastic Ono Band 53 anos atrás foi impactante demais. A um só tempo, se é possível, foi norteador e desnorteador. Ouvi-lo hoje é triste, um pouco doloroso e fortemente evocativo de uma época. Entre os discos que me são mais caros, esse tem um lugar especialíssimo no meu coração e na minha mente.