“Gilberto Gil é ator e ativista dos valores da democracia e da cultura internacional”

Gilberto Gil (Foto/@nattannaella) recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. A homenagem ao compositor foi nesta terça-feira, 31 de outubro de 2023, em Lisboa. Gil está terminando uma turnê pela Europa.

A jornalista e escritora portuguesa Anabela Mota Ribeiro* acompanhou a cerimônia, e é dela o texto que trago hoje na coluna.

É o que segue:

1. Quantos tempos cabem em duas horas? Há um gesto de Gil que dá esse tempo, que é o próprio Tempo: aquele em que passa a mão pelo cabelo branco, imaculadamente branco, logo depois de lhe ser colocada a insígnia. Fá-lo com suavidade, essa palavra trazida para os discursos da tarde e que contém, em si, a mais importante de todas as palavras: vida. Sua-Vida-de.
Vida, Tempo, Mundo: as palavras raiz, as palavras recorrentes na sua obra imensa, horizonte de indagação filosófica, motores para pensar e criar, e repensar e recriar, sempre refazendo tudo, realçando tanto, numa experimentação incessante. Procurando a sua inserção no planeta, Gil é “não só um mundo, mas o mundo”, sintetizou o Reitor da Universidade. Um expoente da cultura falada em português, “ator e ativista dos valores da democracia e da cultura internacional”, que tem nesta dinâmica de diferentes esferas de ação uma das suas riquezas, apontou Clara Rowland, professora de Literatura Brasileira e pró-reitora da Universidade Nova para a Cultura.
Gilberto Gil reorganiza o cabelo, em desalinho pelo movimento de imposição da faixa verde. A faixa sobre o traje negro (em Portugal chama-se “beca”), o diploma dentro do rolo, os signos depois das palavras com que a academia atribuiu o grau de doutor honoris causa ao músico e compositor, assim designado de forma sumária, antes do elenco de honrarias com que foi agraciado, antes do sublinhado do seu percurso de exceção.
Acaricia o cabeça, e eu invento que é o seu pai que acaricia a sua cabeça de menino, que é nele que pensa quando se vê naquele lugar, numa distinta universidade portuguesa que completa agora 50 anos, quando recebe “um gesto de amor encharcado de afeto e carinho” sob a forma de doutoramento honoris causa. Porque me interrogo: em quem pensa ele?, quem teria máximo orgulho nele?, a quem dedicaria esta distinção?
2. Tudo começara cerca de duas horas antes, ao início da tarde. Gil pisa o caminho de pedra, entre o carro e a entrada da universidade. Tem uma elegância tranquila, um sorriso sereno. O reitor, já vestido com traje acadêmico, recebe-o, dá-lhe as boas vindas, conduz o laureado aos bastidores. Vê-lo-emos de novo pouco depois, quando desce com o cortejo acadêmico as escadas do auditório. No centro, um piano. No palco, três cadeiras, um púlpito. O coro da universidade entoa Gaudeamus Igitur, hino interpretado em cerimônias de graduação e júbilo. Tradução possível para esta expressão latino: “alegremo-nos, portanto”.
Outro modo de o dizer usando as palavras de Chico Buarque para a revolução dos cravos: foi bonita a festa, pá.
Está a ser bonita a festa, pá, alegremo-nos. Estão na plateia os familiares de Gil. A mulher, Flora, os filhos Maria, Bem, José, os netos João e Flor, muitos amigos. Estão na plateia o ministro da Cultura de Portugal, Pedro Adão e Silva, o antigo ministro da Cultura de Portugal, José Antônio Pinto Ribeiro (ministro ao tempo em que Gil tutelou a Cultura no Brasil), antigos reitores, autarcas, embaixadores, representantes da sociedade civil, amigos. Estão músicos como Pedro Mafama (o artista português mais tocado no Spotify este ano), Samuel Úria, Sérgio Godinho. Está a poeta Matilde Campilho, a cineasta Marta Mateus. Está Francisca van Dunem, a primeira mulher negra a ser ministra em 40 anos de democracia portuguesa (foi ministra da Justiça). Estão as cantoras Ana Moura, Mayra Andrade, Selma Uamusse, as poetas Alice Neto de Sousa e Gisela Casimiro, todas com raízes africanas. O músico Dino D’ Santiago, a chegar de Chicago, mandou uma carta. O escritor Kalaf Epalanga mandou aquele abraço dos Estados Unidos. Todos exprimem profunda admiração por Gilberto Gil, uma conexão com a sua arte e empenhamento cívico, e reconhecem a extrema importância política desta distinção. Vale a pena lembrar, numa altura em que a discussão dos temas pós-coloniais decorre de uma forma cada vez mais audível no mundo todo, que Gilberto Gil foi a primeira pessoa da cultura popular a entrar na Academia Brasileira de Letras e apenas o segundo negro em mais de cem anos, numa casa fundada por um outro afro-descendente, Machado de Assis.
As questões da negritude, a luta contra a discriminação e o preconceito, estão no centro da intervenção pública de Gilberto Gil e constituem um elemento fundamental da sua pulsão criativa. A reconexão com a raiz negra e a imersão numa profunda e fértil africanidade assumem um protagonismo narrativo na sua obra, em particular nos discos dos anos 70 e depois de um longo período passado na Nigéria. Gil fala com os seus ancestrais, monta uma árvore genealógica, é hábil na formação de diferentes sedimentos, na junção de contrários. Mistura tradição com chiclete com banana, convoca a memória da escravatura em Ladeira da Preguiça. Os exemplos abundam, são conhecidos e eloquentes.
3. A cerimônia. O doutoramento honoris causa é a mais elevada honra acadêmica atribuída por uma universidade. Perante centenas de pessoas, dezenas de jornalistas, fez-se esta pergunta retórica, gentil, sincera: como é que um só homem representa tão bem tantos valores?
Palavras e assuntos trazidos para dar algumas respostas: a gestação do movimento Tropicalista, a expressão de vanguarda, a alegria sã e a compreensão profunda da humanidade, o caráter multifacetado da obra, o acolhimento de influências díspares, a reinvenção de si mesmo, o artista que nasceu dos solos mais generosos, a interação de mundos, o potencial poético do seu vocabulário. Em suma, “não há nada de que Gil não seja capaz, nu com o seu violão ou vestido de fraque e lantejoulas”.
As canções e outros elementos: o abacateiro de Refazenda e, nele, o pacto entre o Homem e a Árvore, Expresso 2222, Back in Bahia, Se eu Quiser Falar com Deus, Aqui e Agora, Cérebro Eletrônico, Palco, A Linha e o Linho (analisado verso a verso, nota a nota, segundo a segundo pelo professor de Ciências Musicais Manuel Pedro Ferreira), Aquele Abraço.
Gil é aquele a quem queremos retribuir Aquele Abraço. Mas antes dos abraços, leia-se: dos cumprimentos finais, entre o tilintar dos copos e o vinho do Porto, Gil falou.
Gil falou e, ou muito me engano, ou emergiu um sotaque baiano mais cerrado do que habitualmente lhe reconheço. Que voz brotaria dentro dele, de que lonjura, de que cronologia?
Poderia não estar ali, poderia ter recusado, por “acanhamento ou por mistérios profundos que dormem em cada alma”. Mas teria sido uma grosseria recusar. E como não estar neste “laço irmão de culturas contíguas”? Gil falou de si próprio como “cantor do simples, do subtil, quiçá do belo, acossado pelos horrores do mundo” em que vivemos.
E depois comoveu-se até às lágrimas, que enxugou com um lenço de pano de cor creme. Enxugar as lágrimas com um lenço de pano: gesto de senhor sem tempo, feliz e profundamente grato.
Porém, ainda cantou. Foi um canto com os lábios, que ninguém escutava, mas todos podiam adivinhar. O pianista Júlio Resende interpretou Não Tenho Medo da Morte, Drão, Cálice. Foi em Cálice que um murmúrio vindo da plateia participou nesta liturgia. Uma canção contra a ditadura, um jogo de palavras: cale-se / cálice. Cantamos todos, voz uníssona, baixinho.
No final, soube que a professora Clara Rowland, que fez, com Manuel Pedro Ferreira, um magnífico elogio do laureado (os seus discursos ficarão disponíveis no site da Universidade Nova), assistiu a um concerto de Gil em Paris, quando tinha 20 anos. Nessa altura, estudava Guimarães Rosa e pediu (ao músico, compositor e desde hoje doutor) um autógrafo no livro de Rosa Tutameia. Hoje, Clara ofereceu a Gil um livro de Rosa que acabou de sair pela primeira vez em Portugal, de uma coleção de que é coautora, e, no lugar de pró-reitora patrocinou a entrada de Gil nesta academia. As voltas do mundo…
Dessa troca de livros, eu soube, mas não vi. Vi uma senhora que servia à mesa, uns 50 anos, cabelo louro, que pediu a Gil uma fotografia, já à saída. Quando lhe perguntei o nome, lamentava-se que o encontro não tinha ficado registado. Falhanço da máquina. “Que pena, sou tão fã…”. O seu nome é Mila.
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* Anabela Mota Ribeiro é jornalista e escritora portuguesa. Tem mestrado em Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, onde vive e atua, e, em nível de doutoramento, estuda a obra de Machado de Assis.